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Showing posts from January, 2009

Poema meu: Eu e a Palavra

Foto: Fathia Al-Absi faz pão no campo de refugiados de Al-Shati , Gaza. Photograph: Abid Katib/Getty Images http://blogs.guardian.co.uk/food/2008/04/20-week/ Eu sou o chão que a palavra pisa. Eu sou o pão que a palavra come. Pobre palavra, consome e oprime justo aquilo que a sustenta viva; pobre de mim, condenado à fome e sabedoria dos insetos, gastos, sujos, insones, expressos na lágrima que não cai, represa. É eu e a palavra que me pisa, eu e essa palavra que me come, juntos no matrimônio fundido até que o tempo dê a medida das coisas e nos livre do amor em que eu sou chão e pão da palavra.

As delícias de uma vida gelada longe dos trópicos

Desesperado, enterrado no meio da neve e "comemorando" um mês consecutivo de temperaturas abaixo de zero, fui consolado por Zuleide, que como grande seguidora de Polyanna, me fez uma lista de coisas positivas nessa minha vida longe dos "tristres trópicos" [Ah, Levi-Strauss!]: 1. Agora eu posso tomar sorvete bem lentamente já que ele não fica derretendo e respingando em uns poucos minutos! 2. Agora eu posso deixar o feijão e o arroz dias fora da geladeira e eles nem mofam nem azedam! 3. Se eu quero um refrigerante bem gelado, basta deixar ele no carro ou do lado de fora uns 10 minutos! 4. Agora eu não preciso mais escolher entre três camisas favoritas: posso [e devo] simplesmente vestir as três e sair de casa! 5. O mesmo se aplica às minhas meias favoritas [tentei dizer a Zuleide que todas as minhas meias são iguais, mas elas me disse que eu insisto em ver o copo com uma metade vazia quando ele está com uma metade cheia]. 6. Transpirando menos [transpirar? o que é is

Machado ainda afiado mesmo com leitor cego?

Quando eu morava no Brasil, nós tínhamos um grupo de leitura em casa que se reunia toda as segundas à noite lá em casa para ler um conto não muito longo, para ler em voz alta de uma vez só e dar tempo de conversar depois. Os contos podiam ser trazidos por uma pessoa, mas também lemos dois livros inteiros [os Cem Melhores Contos e o Tutaméia] assim, conto a conto meses a fio. Fiquei espantado quando lemos "Pai contra Mãe" de Machado de Assis e uma das pessoas achou que Machado não via com maus olhos a instituição da escravidão. O conto começa com uma espécie de prólogo: "A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fech

Para Caroline Pivetta da Mota

Quase assinei o comentário anterior como Zuleide. Pois agora Zuleide tomou conta de todo o meu ser e reproduzo aqui o e-mail que ela mandou hoje para o jornal O Globo hoje depois de ler a noticia sobre a nova prisao de Caroline Pivetta da Mota. Caros Editores, Gostaria de manifestar publicamente meu agradecimento às autoridades pois sinto-me muito mais segura agora que essa terrível pichadora da Bienal – que ainda por cima é ladra de DVDs – encontra-se novamente atrás das grades. O que esse país precisa é justamente disso, de dar um basta à impunidade e ao vandalismo da juventude sem valores. Qualquer pessoa com um mínimo de formação entende que essa moça é obviamente uma pessoa perigosa e precisa ser tirada da sociedade. Só assim teremos paz e não vou precisar ter medo de ir a um museu com os meus filhos e encontrar as paredes todas pichadas. Que a prisão dessa moça envie uma mensagem aos outros jovens pichadores de museu que agora sabem, que se eles picharem, terão que pagar pelas co

Blogolandia

Li no blogue http://www.pretensoliterato.blogspot.com/ recentemente o seguinte post: "Mulher não gosta de transar Uma pesquisa realizada pela Universidade de São Paulo (USP) “descobriu” que o sexo é a oitava prioridade na vida das mulheres brasileiras, absurdamente atrás de itens como “horas de sono” e “atividades culturais”, por exemplo. Para elas, sexo só é mais importante que os itens “exercícios e férias regulares”. Lendo a notícia, ficou claro para mim o porquê de, atualmente, “as coisas” andarem mais difíceis para o nosso lado, amigos homens... Ah, a pesquisa também apontou que, para os homens, o sexo é a terceira prioridade, atrás de “alimentação saudável” e “convívio com a família”. Tudo bem, com família eu não mexo, cristão que sou. Mas “alimentação saudável”? Tenha dó! Que bando de homem frouxo que é esse que está espalhado Brasil afora, Deus do céu!? Além de não ligar para sexo (será possível isso?), eles também não comem o maravilhoso fígado com jiló do Mercado C

Contos 2: Trecho Sensacional de "Axolotl" de Cortázar

Foi assim, com a graça de San Julio Cortázar, o Grande, que foi inventada a transmutação de voz narrativa, do corpo de personagem-gente para o corpo de um personagem-anfíbio: "Mi cara estaba pegada al vidrio del acuario, mis ojos trataban una vez mas de penetrar el misterio de esos ojos de oro sin iris y sin pupila. Veía de muy cerca la cara de una axolotl inmóvil junto al vidrio. Sin transición, sin sorpresa, vi mi cara contra el vidrio, en vez del axolotl vi me cara contra el vidrio, la vi fuera del acuario, la vi del otro lado del vidrio. Entonces mi cara se apartó y yo comprendí. Sólo una cosa era extraña: seguir pensando como antes, saber. Darme cuenta de eso fue en el primer momento como el horror del enterrado vivo que despierta a su destino. Afuera mi cara volvía a acercarse al vidrio, veía mi boca de labios apretados por el esfuerzo de comprender a los axolotl. Yo era un axolotl y sabía ahora instantáneamente que ninguna comprensión era posible. El estaba fuera del acuari

Reformas Ortográficas

Eu também estranho as mudanças na ortografia e tenho preguiça de reaprender as regras [ainda escrevo como antes]. Mas esse auê todo, esse mal-humor todo com mais essa reforma, me fez recolher alguns exemplos de passados às vezes bem recentes para dar uma certa perspectiva aos rabugentos de plantão. 1. Até o começo dos anos 70 a gente acentuava as coisas assim em português brasileiro: Sàbiamente êle fôra embora mais cedo mas ela sòmente estranhou a côr do envelope. O cafèzinho estava bem prêto. 2. Já lá pelos anos 1940 a gente escrevia assim: Com o irmão prêso há três annos e o triumpho dos inimigos, a familia estava anniquilada. A commoção della e seu instincto de sobrevivência o fizeram fugir. Era vivissima a lembrança dos ruidos do quarto. 3. Por outro lado, bem mais atrás, no século XVII, não havia ainda homogeneidade. Uns escreviam assim: Toda a orthographia consiste em escrevermos, assi como pronunciamos; & assi hemos de pronunciar,

Conto 2 - Borges y yo

Além de "A quinta história", inclui outros quatro contos curtos que lidavam também com o escrever. Um deles era "Borges y yo", que trata da dupla vida [pública e privada] que de certa forma quase todo mundo tem, mas que num escritor famoso torna-se um problema mais agudo. O conto, de uma única página, abre assim: "Al otro, a Borges, es a quien le ocurren las cosas. Yo camino por Buenos Aires y me demoro, acaso ya mecánicamente, para mirar el arco de un zaguán y la puerta cancel; de Borges tengo noticias por el correo y veo su nombre en una terna de profesores o en un diccionario biográfico." E termina descrevendo as mudanças de temática na carreira do contista como uma tentativa de livrar-se da tal outra figura: "Hace años yo traté de librarme de él y pasé de las mitologias del arrabal a los juegos con el tiempo y con to infinito, pero esos juegos son de Borges ahora y tendré que idear otras cosas. Asi mi vida es una fuga y todo lo pierdo y todo es d

Contos 1 - A quinta história

Enquanto as pessoas no Brasil vão à praia e tiram férias, eu estou trabalhando a pleno vapor com um semestre novo e -18ºC lá fora... Como estou dando um curso sobre o conto latino-americano, aproveito para fazer uma série nova. Esqueçam a tietagem absurda e leiam qualquer coisa de Clarice Lispector como se ela fosse um escritor qualquer. Nada de divina bruxa, de maga maravilhosa, de deusa do mistério; só uma escritora de carne e osso e sua obra. Acredite, esse é um favor que você presta à obra dela e a você mesmo. Clarice é uma escritora muito corajosa no sentido do que disse o Bolaño no meu post passado, mas coragem só não basta. Clarice Lispector escreve com uma precisão impressionante. O conto "A quinta história" e bem curto; mal completa um par de páginas. O mesmo enredo trivial das baratas no apartamento é contado cinco vezes - a primeira em sumárias duas linhas que se atém aos fatos e acentua a aparente banalidade do evento e depois três versões cada vez mais intensas.

Uma gotícula de teoria: correr riscos em literatura

Encontrei um trecho de entrevista de Bolaño em que ele fala sobre a idéia de correr riscos em literatura, articulando o formal e o que ele chama de ético, deixando claro que o formalismo que podemos chamar de experimental pode ser a mais chata e previsível das literaturas justamente pelo seu vazio, por propor uma forma sem assumir qualquer tipo de risco no campo da relação entre arte e experiência, entre arte e vida. Bom, pelo menos essa é a interpretação que eu dei ao trecho... n.enc .. "Cuando hablo de riesgos formales no me limito a lo que comúnmente se llama literatura experimental. Tampoco estoy pensando en lo que se suele designar como literatura aburrida. La literatura aburrida, precisamente, es la que no asume riesgos. Y los riesgos, en literatura, son de orden ético, básicamente ético, pero no pueden expresarse si no se asume un riesgo formal". ... "De hecho, en todos los ámbitos de

Gillian Welch and David Rawlings

Gillian Welch and David Rawlings fazem música caipira americana de montanha, típica do norte montanhoso e extemamente pobre da região sul dos EUA, sul que é aliás o berço de quase tudo que presta em cultura popular americana. Fazem esse tipo de música sem espírito "conservacionista" que quer "preservar" [em formol] o estilo, muito menos nem o espírito "mudernizador" [com u mesmo], que significa basicamente passar gel no cabelo, usar um terninho e uma montanha de sintetizadores cafonas. A idéia desses dois é outra; é fazer essa Mountain Music acreditando no potencial que ela tem, sem pensar que ela precisa ser "resgatada" ou pasteurizada. Deixo aqui o link de uma das melhores canções deles, uma "Murder Ballad", que sempre tem uma letra comprida contando uma história, sempre a história de um assassinato. Reconheço que muita gente torceria o nariz, mas só por fugir do quarteto onipresente das FM [cama, ama, dor, amor] já merece uma chance

Oliver Sacks - Musicofilia

Para tentar ler alguma coisa por pura diversão resolvi pegar um audio-livro [em um punhado de CDs] e colocar no i-pod de Letícia e "escutar" um livro nos momentos em que caminho sozinho [geralmente depois de deixar meu filho na escola]. O livro que escolhi foi Musicophilia de Oliver Sacks - já tinha lido "O homem que confundiu sua mulher com um chapéu" no meu curso de graduação. Oliver Sacks é neurologista mas escreve muito bem, seus casos médicos são verdadeiros contos. Retardados que sabem de cor as melodias e harmonias de mais de 200 óperas, um sujeito que é atingido por um raio e fica absolutamente louco com música, um músico que sofre um derrame e não consegue mais reconhecer um piano afinado de um completamente desafinado, etc. No livro ele se concentra na audição, particularmente a relação que nós humanos temos com a mais abstrata das artes.

Recomendação

Suave Coisa [http://quelevequenada.blogspot.com/] da Mariana é um blogue de poesia muito bom. Eis um exmplo da poesia que se encontra lá: afinação há que se aprender a tirar silêncio das coisas quando uma coisa produz silêncio ela está pronta

Insensatez

Muita gente tende a achar traduções ou versões ou adaptações sempre piores que o original. Eu discordo e dou um exemplo. Vinícius de Morais escreveu a letra de Insensatez, mas a versão em inglês é melhor. Deixo as duas aqui e depois me explico em outro post: Insensatez Ah, insensatez que você fez Coração mais sem cuidado Fez chorar de dor o seu amor Um amor tão delicado Ah, por que você foi fraco assim Assim tão desalmado Ah, meu coração, quem nunca amou Não merece ser amado Vai, meu coração, ouve a razão Usa só sinceridade Quem semeia vento, diz a razão Colhe sempre tempestade Vai, meu coração, pede perdão Perdão apaixonado Vai, porque quem não pede perdão Não é nunca perdoado How insensitive I must have seemed When she told me that she loved me How unmoved and cold I must have seemed When she told me so sincerely Why she must have asked Did I just turn and stare in icy silence What was I to say? What can you say When a love affair is over? Why she must have asked Did I just turn and

Um poema meu - Mash-up de "Morte sem fim"

Mash-up 5: Morte sem fim ¡Hazme, Señor, Un puerto en las orillas de este mar! Eis o meu poema, pesadelo surdo da carne, que queima, punciona, rói, sangra. Flor que se abre pra dentro, estéril, cheia de mim, repetindo; presa na epiderme que me define, cheia de mim. Eu, seco como a sede do gesso, padecendo a fome do ar que respira, por um Deus inalcançável, rancor da molécula. Pântano de espelhos, solidão em chamas. Surdo pesadelo da carne. Ilhas de monólogos sem eco. Topo dum tempo paralítico. Ínfimo do olho que segue o curso da luz pela pele da gota de orvalho. Flor que se abre para dentro, afogada n’água estrangulada no copo. Poema que se afoga na garganta – Resta o poço ainda ressecado, esgar de agonia: o poema. Obs. Mash-up, um termo emprestado da música, é basicamente um processo de edição em que se combinam a voz de uma canção e o acompanhamento instrumental de outra canção completamente diferente, ajustando-se tom e andamento da segunda, para a criação do que podemos considerar q

Por que Bolaño?

Eu me prometi não sucumbir a esse tipo de prosa raivosa, mas às vezes eu não resisto. Perguntaram recentemente a um técnico português se um dos seus jogadores brasileiros poderia se transferir para um clube brasileiro. O tal patrício demonstrou espanto incrédulo com a pergunta e arrematou: “No Brasil, só se vai passar férias". Essa pérola, simultaneamente lusitana e futebolística, me fez pensar numa explicação para as pessoas no primeiro mundo se sentirem tão à vontade com a literatura de “latinoamericana” de Bolaño de 2666: é porque os personagens de Bolaño em geral [mas nem sempre] vivem se deslocando, viajando, imigrando, fugindo, sendo deportados, se extraviando, etc. E um latino-americano é, no imaginário do habitante do primeiro-mundo, um ser em permanente deslocamento. Para essas pessoas um latino-americano só existe concretamente, só tem interesse efetivo, quando está fora da América Latina, preferivelmente em caráter permanente. Isso porque a América Latina [e o teceiro m