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Showing posts from June, 2010

Ainda sobre a sacanagem: a marrequinha dança na ABL

O blogue Não Gosto de Plágio acertou na mosca de novo, só que agora a mosca anda voando na mais vetusta das vetustas a Academia Brasileira de Letras. A série sobre a premiação bizarra da ABL no quesito tradutor é imperdível. Cá do meu canto eu fico pensando nas minhas raízes maternas pernambucanas e digo: um estado tão rico de história e cultura popular, o estado de Manuel Bandeira, João e Evaldo Cabral de Mello, Ariano Suassuna e Aurélio Buarque de Holanda não merece isso...

Sacanagem, uma vetusta tradição nacional

Para quem acha que a letra de duplo sentido na música brasileira é fruto da recente decadência na moral e nos bons costumes do nosso querido Brasil varonil, ofereço como prova do contrário a letra dum Lundu [avô do samba] muito popular no alvorecer da nossa nação, chamado “A marrequinha” de 1835. Os olhos namoradores Da engraçada Iaiazinha Logo me fazem lembrar Sua doce marrequinha Refrão: Iaiá, não teime Solte a marreca Se eu não morro Leva-me à breca Se dançando à brasileira Quebra o corpo a Iaiazinha Com ela brinca pulando Sua bela marrequinha Refrão Quem a vê terna e mimosa Pequenina e redondinha, Não diz que conserva presa Sua bela marrequinha Refrão Nas margens da Caqueirada Não há só bagre e taínha: Ali é que ela criou Sua bela marrequinha. Refrão Tanto tempo sem beber… Tão jururu… coitadinha!.. Quase que morre de sede Sua bela marrequinha. Poesias de Francisco de Paula Brito, 1863 (67-68) [encontrável online aqui ] A letra é de Francisco de Paula Brito (1809-1861), que co

Recordar é viver: profetas da raça

[Ilustração: flagrante de uma nação de guerreiros mostra crítico que, na falta do autor, é flagrado bem no ato de dar um pontapé desleal no livro do coitado] Há quem ache que a Veja inventou alguma coisa. Murros e pontapés são coisa antiga Pois veja o que aconteceu há mais de 50 anos, em outubro de 1958: a revista Leitura trazia uma singela reportagem entitulada “Escritores que não conseguem ler Grande Sertão -: Veredas..” Lá estavam entre outros Adonias Filho, à direita, quase ameaçador, dizendo que Grande Sertão: Veredas, “apesar do interesse que possa oferecer constitui um equívoco literário, que necessita ser imediatamente desfeito”. e, à esquerda, Ferreira Gullar chutando de canela e dizendo que o romance era “uma história de cangaço contada para lingüistasthey were simply “a futile exercise for philologists”.

Prosa e poesia

Foto minha de dentro do carro durante uma nevasca. The Second Coming TURNING and turning in the widening gyre The falcon cannot hear the falconer; Things fall apart; the centre cannot hold; Mere anarchy is loosed upon the world, The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere The ceremony of innocence is drowned; The best lack all conviction, while the worst Are full of passionate intensity. Surely some revelation is at hand; Surely the Second Coming is at hand. The Second Coming! Hardly are those words out When a vast image out of Spiritus Mundi Troubles my sight: somewhere in sands of the desert A shape with lion body and the head of a man, A gaze blank and pitiless as the sun, Is moving its slow thighs, while all about it Reel shadows of the indignant desert birds. The darkness drops again; but now I know That twenty centuries of stony sleep Were vexed to nightmare by a rocking cradle, And what rough beast, its hour come round at last,

Lydia Davis: In a House Besieged

Foto minha do parque Sleeping Giant In a house besieged lived a man and a woman. From where they cowered in the kitchen the man and woman heard small explosions. 'The wind,' said the woman. 'Hunters,' said the man. 'The rain,' said the woman. 'The army,' said the man. The woman wanted to go home, but she was already home, there in the middle of the country in a house besieged. Aqui entre nós, poderia ser Cortázar...

Recordar é viver: Santa Barbara, 1969

II O tal negócio preto na areia era piche. Em 1969, ou seja TRINTA E UM ANOS antes da minha chegada naquela praia, uma plataforma de petróleo perto da costa de Santa Barbara vazou entre 80 e 100 mil barris de óleo cru em DEZ DIAS. O desastre marcou uma grande mobilização na Califórnia para fiscalizar de perto as exploração de petróleo com vista à preservação ambiental, com uma moratória da exploração marítima nos EUA que durou até 2008. Dois anos depois do fim da moratória acontece o vazamento da plataforma da BP no Golfo do México, que começou dia 20 de abril e ainda não foi estancado. Alguns dizem que jorram dali entre 12 e 19 mil barris POR DIA e estamos chegando a TRES MESES de vazamento. Um oficial do governo do Obama disse que a limpeza duraria até setembro e teve que se retratar no dia seguinte. Minha experiência em Santa Bárbara indica que eu talvez não esteja mais aqui quando essa meleca acabar. Se é que essa meleca acaba.

Recordar é viver: praia

I Há dez anos atrás eu cheguei à Califórnia para estudar na Universidade da Califórina em Santa Barbara. Eram praias lindas e montanhas deslumbrantes num clima tão ameno que nunca fazia calor nem frio demais e quase nunca chovia – só uma suave garoa à noite deixava as plantas molhadas de manhã cedo. Eu morava bem perto de uma praia vazia toda pontilhada por fiordes, sem acesso nenhum por automóvel – nem nome essa praia tinha, que eu saiba. Logo nos primeiros dias descobrimos como chegar à tal praia e eu todo animado fui caminhar na areia descalço. O ruim de não fazer calor demais é que quando bate um vento fica meio frio na praia. Quase não dá quase para nadar e é melhor levar uma blusa de manga comprida. Caminhamos mais um pouco e resolvemos voltar para casa por causa do frio. Na volta reparei uns pontinhos pretos minúsculos espalhados na areia molhada e peguei um deles. Seria um bichinho? O negócio grudou nos meus dedos. Eu arrancava da mão direita e ele colava nos dedos da mão esque

Mais um fragmento: dois sonhos

Dois pesadelos recorrentes me perseguiram quando eu fui embora do Brasil. O primeiro acontece na velha casa de três andares de madeira onde eu morava. Eu estou andando, apressado, descendo as escadas até chegar num porão velho, escuro e sujo. Ele está logo atrás de mim. Eu não vejo, não ouço nada além dos meus passos mas sei que ele vem descendo as escadas e vem me pegar. Eu corro e me encolho entre duas caixas de papelão vazias mas não consigo me esconder completamente porque sou grande demais. Então eu me levando apressado e bato com a cabeça numa viga de madeira do teto. Junto com a dor uma onda de calor desce pela minha cabeça a partir do ponto do choque com a viga. Eu caio no chão coberto de poeira, de barriga para cima, com as pernas e os braços abertos e quando passo os dedos na cabeça e sinto o sangue mas não vejo nada nas mãos. De repente eu não consigo mais mexer braços e pernas e ouço um barulho abafado, discreto, indiferente, inconfundível: são os ratos se aproximando. Leva

Poesia Minha: Brincando com o soneto

Os representantes das massas em três movimentos I É um grupo muito sério de pessoas muito sérias com assuntos muito sérios para perder tempo com você. Na engorda ou na espreita, mosca batendo a cabeça na vidraça do mercado, você come cru ou azedo e não sabe nem quer saber e rouba no preço e rouba no peso e rouba na nota e rouba no frete e tem pressa e tem medo e não vale muito mais que esse coração submerso. II Quando tem tempo demais sai correndo, derrubando estabanado tudo que vale a pena. Quando tem tempo de menos dorme seus sonhos mofados, sempre comendo migalhas, a água subindo até o pescoço e a cabeça enterrada na areia. Hoje você é pasto apaixonado pelo gado; amanhã será óleo na máquina pasma que vende a geléia da verdade e o elixir do tempo perdido de quatro em quatro anos. III São pessoas muito sérias, não se encontram no momento mas retornam assim que puder. A janela está fechada; ruge

Polca New Wave com letra de Cordel?

A música ranchera do norte do México é uma mistura curiosa: a velha polca martelada impavidamente quase como um rock da época do New Wave com baixo, bateria, violão e sanfona quase minimalistas e canções que são versões modernas do corrido, uma letra comprida sem refrão que conta uma história, no mínimo, verdadeira com floreios. Hoje em dia histórias de pelejas com a Migra americana e narcocorridos, sobre traficantes. É música popular proletária ou camponesa que conta as histórias dessa gente e é também música de baile: Los Tigres del Norte – que também tocam boleros e cumbias – não têm uma lista de canções preparada para os seus shows; as pessoas jogam papeizinhos no palco e eles vão tocando os pedidos do público até os papeizinhos acabarem ou o dono do recinto apagar a luz. Abaixo um exemplo: Señor Locutor – Los Tigres del Norte Hombre 1: Hola, Señor Locutor, Si me hace un favor, Póngame una canción Que no hable de amor. Quiero que sepa esa mujer Que su adiós me dolió Que me dio un

Um fragmento

A beleza em ação: uma marca, um gesto provoca um momento breve e intenso de reconhecimento que atinge qualquer um dos cinco sentidos. A realidade, quando dela nada se espera, nos entrega seu melhor presente: a beleza acidental, improvisada, inacabada, apropriada e absorvida sem culpa nem hedonismo, quase irreconhecível. Num detalhe o sinal de um mundo novo. Daí o desarme rápido das soluções apressadas que resolvem os dilemas mais dolorosos de deus e o mundo com uma dessas barbaridades simplistas – uma teoria, uma citação, uma generalização em abstrato – no fundo em nome apenas de parar de pensar no que dói. Exemplos de beleza: Minha avó escutando meus medos pacientemente – eu explicava que já tinha preparado a dinamite mas não estava pronto para acender o pavio – e ela então dizendo: quem espera sempre alcança, se não morre no meio do caminho. Eu querendo afugentar do presente os demônios da história e meu pai tentando me ensinar através do exemplo que a gente não é só o que faz mas o

Érico Veríssimo - Fim de México, Diário de uma viagem

Vejo semelhanças entre o trecho que postei do livro do Fábio Durão e esse trecho do livro do Érico Veríssimo, que nos anos 50 se vê também perdido [no bom sentido] em um triângulo de culturas. "Eu sabia que o epílogo deste livro não podia ser feliz! Estou talvez condenado a oscilar o resto da vida entre esses dois amores, sem saber exatamente o que desejo mais, se o mundo mágico ou o mundo lógico. Só me resta uma esperança de salvação. É a de que, entre a tese americana e a antítese mexicana, o Brasil possa vir a ser um dia a desejada síntese. Y quién sabe?"