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Showing posts from June, 2020

Ainda Gonçalves Dias (me desculpem)

Diz a nota biográfica da Academia Brasileira de Letras sobre Antônio Gonçalves Dias que  "A consciência da inferioridade de origem, a saúde precária, tudo lhe era motivo de tristezas."  Notem bem nos termos dessa frase que se coloca para o leitor como meramente objetiva: a frase implica claramente que a origem (mestiça, bastarda?) do escritor maranhense filho de português com mestiça era, sim, de fato, "inferior"!  Meu primeiro instinto é exclamar, "Inferior para quem, cara pálida?" (e agora as aspas são para mim mesmo). A tal frase, tão neutra e serena, apenas nos informa que Gonçalves Dias tem "consciência" desse "fato" (embrulha-se aqui num só pacote chamado "tudo" fato, consciência do fato e "saúde precária") e que a "inferioridade" e a "consciência da inferioridade" do poeta são "motivo de tristezas" que marcam sua poesia "eminentemente biográfica".   Fico com u

Ficções quase reais

Quando eu tinha meu blogue, era o que eu mais escrevia. Estou meio sem prática, tentando voltar. Então... eis o que tenho feito no Word . Garotos e garotas Há uma falta que não consigo distinguir. Ela ocupa lugar em mim. Eu sinto e é muito claro e físico, mas não, não estou falando de sexo. Se a questão fosse essa, a solução era fácil. O que eu estou falando é maior, bem maior. Maior que eu e implacável. É esse bolo na garganta, é esse grito sufocado como foi sufocar o grito no Kamikaze do parque de diversões furreca que todo ano visitava a cidade. Explico. Eu tinha onze anos e estava satisfeito. Vi os meninos mais legais da minha sala duas fileiras à frente. Planejei esbarrar neles quando o brinquedo parasse e tivéssemos que descer as escadas. Depois que me reconhecessem e me convidassem a andar com eles, eu ia me despedir da mãe e descobrir como é estar com os caras e falar com as garotas. E então, no dia seguinte, eu participaria das conversas, estaria nas rodas, faria parte

Poesia minha

Tupis com Espírito Santo Sonhos, sonhos. Estou vendo o que você é; o que você foi é passado. Livro dos mortos, Luciano de Samósata Toco agora a carne viva da minha lembrança. O passado que não passa mesmo quando cansa. Era o meio-dia dos meus quinze anos, na esquina de Tupis e Espírito Santo, a primeira vez que senti o turbilhão de imagens e ideias que naufragou desde então, tantas vezes repetidas, minha parca consciência, meu siso, minha alegria, meu inquieto coração. Ali eu era um barquinho no meio do furacão, me agarrando aos ferros de uma razão cercada, ferida e incapaz de vestir com senso o caos. Os meus olhos reviravam o céu paralítico. Ignorando tornozelos e pulsos atados a um flamboaiã em chamas e o tronco cravado de flechas quebradas, S. Sebastião tocava o velho tango argentino, que é hoje bandeira e hino: Tudo o que eu vivi morreu. Tudo o que eu perdi é meu. Meu veneno é meu remédio. Não espe

Traduções minhas: trecho de Temporada de huracanes de Fernanda Melchor

Acabei de ler Temporada de Huracanes  da escritora mexicana Fernanda Melchor. Há muito tempo não leio algo tão forte e tão corajoso. Extremos da humanidade explorados com energia vital pulsante e precisão de linguagem. Traduzi um trecho que diz tanto ao Brasil dos cemitérios abarrotados e das valas comuns: " Vovô acendeu outro cigarro e apenas sacudiu a cabeça mansamente enquanto os empregados do depósito de Villa olhavam para ele com expectativa. Queriam que ele lhes contasse uma das suas histórias, tinha certeza, mas o velho não ia dar aos dois essa satisfação. Pra quê? Pra depois eles andarem por aí dizendo que a porra do Vovô era um doido de pedra? Que eles fossem pra casa do caralho! Sobretudo esse porra desse magrelo, que foi quem começou com a fofocaria de que Vovô falava com os mortos, e isso porque o próprio velho lhe contou de boa fé, pensando que o lesado entenderia, mas não: saiu do cemitério espalhando pra meio mundo que Vovô ouvia vozes e estava gagá, quando Vo

Sonhadores reconhecem sonhadores

         Certa vez conheci um Vinícius de Moraes. Ele era só um pouco mais alto que eu, tinha os cabelos muito curtos, castanhos claros, em cachos pequenos bem colados na cabeça. E olhos miúdos, cor de mel. Nós topamos um com o outro diante da porta. Ele quase sorriu tímido quando tocou o interfone. Passou um tempo que não medimos, mas ninguém lá dentro atendeu. Vinícius de Moraes apertou de novo o botão. Eu e ele em silêncio ansiávamos por uma resposta e ela não vinha. Então, eu ficava agitada me perguntando se seria mesmo ali. A placa dizia que sim, afinal, nela estava escrito Hostel Cidade Maravilhosa e era aquela a rua da Glória. Não  havia perigo de engano, é verdade. Acontece que eu sou de dúvidas e de sempre me perguntar e conferir. E era por isso que eu conferia endereço no papel amassado quando alguém abriu e saiu e,... Voltou meio corpo pra dentro e gritou: - Fulano, eles chegaram! Depois - era uma jovem bem jovem com traços orientais, sorrindo displicente como se faz em qu

Sobre "Meditação" Gonçalves Dias: como morre uma cultura/nação/país

Em "Meditação" Gonçalves coloca em diálogo um jovem e um ancião, que discutem a partir de perspectivas diferentes questões relativas ao passado, presente e futuro do Brasil. Num dos momentos altos do texto o Ancião nos joga na cara [na cara de todos os brasileiros] o seguinte: "A nacionalidade, que é dela? O característico de um povo, que é dele? Não sabeis vós que a planta exótica perde o mais excelente de seu aroma, e que a roseira dos Alpes produz espinhos, plantada em vales? Dir-vos-ei que as nações se assemelham os indivíduos. E se milhões de indivíduos morreram sem nome; também foram povos cujos nomes se deliram dos anais da humanidade. E como existiram homens sem gênio; povos também existirão sem ele. Porque eles dirão em sua indolência; – Por que plantarei um pomar se não hei de provar seus frutos? E o mesmo dirão vossos filhos, e ainda o mesmo os filhos de vossos filhos; e não plantarão o pomar. E dirão mais no seu egoísmo: –