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Showing posts from August, 2018

Traduzindo o monólogo de Segismundo de Calderón de la Barca

Goya, 1799 Monólogo de Segismundo [1636] Sonha o rei que é rei, e vive, com este engano, mandando, dispondo e governando; e este aplauso, que recebe emprestado, no vento escreve, e em cinzas lhe converte a morte, maldita morte! Haverá quem tente reinar vendo que há de despertar no sonho da morte? Sonha o rico na sua riqueza que mais cuidados lhe oferece; Sonha o pobre que padece sua miséria e sua pobreza; Sonha o que a medrar começa, Sonha o que afana e pretende, Sonha o que agrava e ofende, e no mundo, em conclusão, todos sonham o que são, ainda que ninguém o entenda. Eu sonho que estou aqui Destas prisões encarregado e sonhei que em outro estado mais lisonjeiro me vi. O que é a vida? Um frenesi. O que é a vida? Uma ilusão, uma sombra, uma ficção, e o maior dos bens é pequeno: que toda a vida é sonho, e os sonhos, sonhos são. [No original de La vida es sueño de Calderón de la Barca]  Sueña el

Obituário: Aretha Franklin

1. Aretha Franklin escrevia canções sobre relacionamentos e sobre desejo como uma mulher adulta e de carne e osso, e por isso mesmo os seus maiores sucessos passam longe daquelas mesmices que abastecem até hoje 90% do que toca nas paradas rádio. Claro que isso tem impacto no mundo de língua inglesa principalmente. 2. Somos todos formatados culturalmente, desde sempre e desde sempre não apenas pela família [imersa ela na cultura específica] mas depois pelos rituais coletivos, que numa cultura de massa são promovidos por rádio, televisão, cinema etc. A cultura de cada um é seu maior tesouro e sua prisão, pois a sua produção nos ensina e nos desensina o que sabemos e tudo o que ignoramos. Daí que a briga por canais de divulgação de produções culturais outras, com visões várias e inteligência, seja uma briga essencial. 3. Nesse sentido Aretha Franklin foi muito mais importante do que parece. Um grupo imenso de pessoas aprendeu com ela o valor imenso de mulheres negras que, além de

Rir dos outros cegos sem rir de nós mesmos

--> As pessoas riem alto com anúncios como esse, pelo absurdo que ele hoje claramente representa. Mas posso dar cinco exemplos de absurdos que acontecem quase todos os dias bem debaixo dos nossos olhos e aos quais parecemos estar completamente cegos. 1. Dezenas de anúncios do comércio grande e miúdo repetem a mesma inversão digna de um 1984 de George Orwell: "compre para economizar, economize comprando". Venha economizar gastando seu dinheiro conosco. 2. Outras dezenas de anúncios e programas de televisão variados repetem outra inversão digna de um Beckett: "envelheça cada vez mais jovem", sem perceber que o único antídoto efetivo contra o envelhecimento é justamente a morte. 3. Mais um bando imenso de pessoas, principalmente candidatos a todo tipo de cargo político, seja do executivo ou do legislativo, repetem incansavelmente, às vezes aos berros: "quanto mais armas e guerra, mais segurança e paz" - pelo menos metade disso aí é

De volta a Oklahoma

Abrindo caixas, fechando contas, lendo correspondências atrasadas, resolvendo pendências novas e antigas, vou encaixando minhas horas de escrita e leitura de volta à minha rotina. Antes das sete horas, já ajustados aos costumes e horários daqui, vamos todos jantar no fast-food baratinho de comida chinesa chamado Panda Express, uma franquia espalhada pelo país inteiro [acho].  Sentados bem ao nosso lado, um casal bem mais velho nos olha com aqueles olhinhos azul piscina apertados entre rugas queimadas de sol, com umas caras de poucos amigos ao escutar a gente falando entre nós mesmos numa língua estrangeira - isso se tornou uma coisa comum por aqui desde que Trumpete e cia soltaram os seus cachorros xenófobos pelas estepes e pradarias dos meios de comunicação de massa, despertando o furor anglo-saxão dormente no peito de muita gente. Cadeiras se roçam levemente e Letícia vira-se, sorrindo, e pergunta em inglês fluente e perfeito se eles precisam de mais espaço. Não, está tudo bem, res

Resumo da Manguaça: Brasil 2018

1. Um pouco mais de dois meses no Brasil passaram voando. As calçadas de BH e RJ de novo coalhadas de miseráveis e as cidades [e as redes sociais] coalhadas de proto-fascistas que me ameaçam dizendo que eu devo "já ir me acostumando". 2. Persistem nessa pressão as relações sociais mais humanas, de roça ali no meu canto da Serra coladinho na favela do Cafezal, apesar da chegada de novos imensos edifícios padrão-coxinha e dos grupos zumbis de Zaps-paranóia. Meus tênis têm mais de cinco anos e meu celular é uma furreca; assim ando sossegado pela rua. 3. Muitos de meus amigos são, como eu, professores/pesquisadores universitários da área de humanas. Entre salários que chegam atrasados e parcelados em fatias, as universidades sitiadas afundam e os professores se escondem em desespero silencioso. 4. Por motivos de necessidade assisti e dois dias consecutivos de Jornal Nacional salpicados de CBN e GNews. A grande teia de meios de comunicação continuam martelando sua mensagem,