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Showing posts from 2020

Dois corações: Mikhail Bulgákov e Paulo Mendes Campos

Música [de novo]: Samantha Crain

A cultura dos indígenas [dezenas de etnias diferentes] fazem com que Oklahoma valha a pena. Massacrados, desprezados, roubados, esculachados, essas etnias sobrevivem a uma agressão cultural, racial, econômica que é difícil de conceber. A cultura sobrevive, forte, brilhante. Cada vez mais tenho a certeza de que só conseguiremos sair desse buraco imenso em que nos metemos já faz tempo quando começarmos coletivamente a escutar as vozes dessas culturas. São seres humanos e possuem todas as falhas e virtudes ocasionais de qualquer ser humano. São tão impuros e misturados quanto os outros seres humanos desse mundo permanentemente conectado. Mas, humanos e impuros, representam também uma outra visão do mundo, da vida, do sofrimento e do prazer. São capazes de uma beleza que encanta a quem tiver ouvidos.   

Música: outros Chicos Buarques

Mais ou menos no mesmo momento em que Chico Buarque, Edu Lobo, Francis Hime, Carlos Lyra, Sérgio Ricardo e outros apareciam no Brasil, a canção se renovava com jovens universitários em toda a América Latina. Tinham vontade de escrever letras elaboradas e inovadoras, tinham vontade de ligar-se a tradições musicais populares dos seus países, tinham desejo de se projetar como cantores e autores mas que como intérpretes. Do Uruguai vem esse incrível exemplo, presente de rede social que uma estudante que se tornou colega e amiga me mandou hoje. Daniel Viglietti, dono de técnica sofisticada para o violão e de letras excelentes como esse "Mucho, porquito y nada". Uma ideia interessante para esses tempos cabulosos, sobre uma certa ligação entre mudanças no pessoal e no público, no micro e no macro, nas atitudes e na vida e sobre a necessidade de seguir "cambiando este cambio nuestro", ir reformando nossos sonhos de acordo com as grandes e pequenas mudanças. 

Diário de Babylon: O condado de Lowndes

 O Alabama é um dos cinco estados financeiramente mais pobres dos Estados Unidos. Uma das partes mais pobres do estado é o chamado cinturão negro [Black Belt], onde antes se cultivava algodão com mão de obra escrava e com meeiros miseráveis e onde agora ainda se cultiva algodão com muitas máquinas e trabalhadores sazonais. Emprego naquele meio rural é uma raridade. 80% dos habitantes do cinturão negro no Alabama não tem esgoto - o nível nacional nos meios rurais é de 20%. O estado simplesmente exige que eles "invistam" em sistema de fossa sépticas - uma bagatela de 20.000 dólares, mais do que a renda anual da maioria das pessoas ali. Não possuir uma fossa funcional expõe o morador a multas sucessivas de 500 dólares cada, despejo e até prisão. E não se brinca com isso: eu mesmo já experimentei na carne o que é viver num estado republicano que "incentiva a responsabilidade individual" - esqueci de pagar uma multa do meu carro e fui surpreendido com a notícia de que ha

Quando o presente ilumina o futuro

 Normalmente pensamos que o passado pode iluminar questões importantes do presente, mas o que aconteceu no Brasil em 2016 iluminou para mim o que aconteceu em 1964 e certas operações cosméticas que foram feitas a partir do fim da ditadura com as manifestações pedindo eleições diretas para presidente. Percebi como foi amplo o apoio ao golpe militar de 1964, como para cada crônica crítica de Carlos Heitor Cony havia dezenas de notas e colunas mais ou menos explicitamente apoiando o fim da "confusão" do governo Goulart, desde manchetes e editoriais de primeira página francamente indecentes até muxoxos e indiretas em cartas privadas de modernistas famosos. Um golpe, militar e/ou parlamentar,  se constrói primeiro assim, na opinião pública, de forma metódica. O da Dilma foi sendo construído desde o começo do governo Lula, até que uma situação econômica desfavorável fornecesse o combustível necessária para a arrancada final: a farsa sexista, tão bem resumida no voto impotente e ind

Alguns esclarecimentos sobre o sistema eleitoral americano:

Já que virou moda acompanhar a eleição americana passo a passo roendo as unhas, faço alguns lembretes para o "torcedor" brasileiro: 1. Cada candidato nos EUA disputa em um distrito. Ali ou ele ganha ou perde. Em outras palavras: perder com 49.99% dos votos ou com 1% dos votos dá na mesma. Cinco bilhões de votos não valem nada se seu oponente conseguir 5.000.000.001. 2. Esse sistema de "tudo ou nada" cria um ilusão de ótica simplificadora, com estados azuis e estados vermelhos, como se republicanos fossem uma minoria ínfima na Califórnia [são quase 4 milhões de votos para Trump] e democratas na Louisiana fossem ETs [mais ou menos 4 em cada dez eleitores votaram em Biden]. Podem conferir: o candidato a presidente derrotado teve pelo menos um terço do eleitorado no tal estado onde ele supostamente perdeu de lambada. 3. Quando você mora num estado [ou num distrito] em que seus adversários têm ganhado sempre com uma margem, digamos, de uns 10%, o sistema do "tudo ou

Viver no paraíso neo-liberal

Viver nos Estados Unidos num estado completamente republicano é assim: passamos já quase uma SEMANA no escuro e no frio s/ energia elétrica [e consequentemente sem internet] em casa por causa de uma chuva com gelo das que eu vivi pelo menos dez vezes por ano no Nordeste dos EUA [que está longe de ser o lugar com o pior clima de inverno nos EUA]. Ficamos todos fingindo que a culpa foi da tal "terrível" chuva, mas os serviços públicos estão todos privatizados e as empresas estão completamente livres para sucatear a infraestrutura e oferecer serviços de péssima qualidade em nome do lucro fácil. Na universidade pública, administrada por um conselho indicado pelos governadores republicanos, e cada vez mais dependente de recursos privados, seguimos com as nossas atividades normalmente, cortando e encarecendo o seguro de saúde dos funcionários mais vulneráveis [em nome da "competitividade"] enquanto criamos novas "iniciativas" para "vender melhor nossa pesqu

Desaperfeiçoamento online de professores

No início do isolamento social, precisei comprar um microfone para gravar os áudios das minhas aulas. Não encontrei em nenhuma loja aqui, nem na cidade ao lado, nem na cidade há duzentos quilômetros. Sempre que eu comunicava o que queria, os lojistas diziam: - ah, aquele microfone de live .?.. tem não. A única live que assisti durante o boom das lives foi a do Caetano. Enquanto eu ouvia as músicas e as coisas que ele dizia, pensava: esse país não merece esse homem.  A essa altura da pandemia, as lives saíram de moda por aqui. Em contrapartida, estão acontecendo muitos eventos de "aperfeiçoamento" para professores. Todos os bancos, todas as indústrias, todas as associações de industriais, trabalhadores rurais, de proprietários ruais, de donas de casa, absolutamente todo mundo que não é professor quer ensinar aos professores como é que se faz para dar aulas. O interessante é que esses grupos, essas associações, essas pessoas, contratam acadêmicos da área da pedagogia para ensi

As coisas não estão indo nada bem

  As coisas não estão nada boas, tanto aqui nos Estados Unidos como no Brasil. Não estou querendo falar dos eventos atuais, relacionados, por exemplo, com as eleições aqui e o que vai acontecer depois. A conjuntura é um assunto exaustivo e nos desvia do fato de que as coisas não vão muito bem e tem sido assim há bastante tempo.  Lembro-me agora da ideia de que o capitalismo precisa se expandir continuamente, sempre destruindo e construindo coisas pelo caminho, sempre incansável. Essa expansão já foi principalmente geográfica: a propriedade e o mercado e as suas prioridades. Desde algum tempo tem ficado mais clara para mim a expansão do capitalismo para dentro de espaços que, antes, ele era obrigado a compartilhar com outros valores e outras prioridades. Assim tem sido com a educação, a saúde, as relações sentimentais, o sexo. De espaços compartilhados, vamos tendo que viver em espaços onde somos totalmente subjugados pelas prioridades do capitalismo.  Prioridade irredutível: se algo ou

Considerações irresponsáveis de uma Renata qualquer sobre Devoção da Patti Smith

Escrevo em blogs desde 2005. Quando comecei, eu trabalhava numa agência de viagens e minha mesa ficava ao lado da mesa do chefe. Muitas vezes eu estive realmente ocupada, mas outras, na falta de clientes, convinha que eu me mantivesse concentrada, digitando, franzindo a testa enquanto olhava para a tela do computador. Foi ali que comecei a escrever. Antes, eu nunca tinha achado que pudesse fazer isso, que pudesse fazer isso por prazer e, ainda pior, deixar que os outros lessem.  Eu não sei muito bem onde eu quero chegar com essa introdução, só intuo. Não sei onde quero chegar quando começo a escrever, quase nunca. Tenho apenas uma vaga ideia que me atormenta em forma de pensamentos rápidos, início meio e fim numa só frase, vez após vez, até que... Voilà, estou aqui escrevendo e tentando fazer sentido. Então, meus blogs sempre foram espaços onde eu pensava para fora e isso virou um hábito, um vício, uma tradição. Quero dizer que o discurso não está planejado, ele se faz, irresponsavelm

Música: "Not Going Anywhere" de Keren Ann

NOT GOING ANYWHERE Keren Ann This is why I always wonder: I'm a pond full of regrets. I always try to not remember rather than forget. This is why I always whisper When vagabonds are passing by: I tend to keep myself away from their goodbyes. Tide will rise and fall along the bay And I'm not going anywhere I'm not going anywhere People come and go and walk away But I'm not going anywhere I'm not going anywhere This is why I always whisper: I'm a river with a spell. I like to hear but not to listen. I like to say but not to tell. This is why I always wonder: There's nothing new under the sun. I won't go anywhere, so give my love to everyone.

Um filme sem vergonha de ser dramático: El espiñazo del diablo de Guillermo del Toro

Assim começa o filme El espiñazo del diablo : "¿Qué es un fantasma? Un evento terrible condenado a repetirse una y otra vez, un instante de dolor quizás, algo muerto que parece por un momento vivo aún, un sentimiento suspendido en el tiempo como una fotografía borrosa, como un insecto atrapado en ámbar."  O filme traduz visualmente essa ideia do fantasma com essa imagem: uma imensa bomba que cai de bico no meio do pátio do orfanato onde se passa o filme mas não explode. Uma das coisas mais admiráveis desse filme de Guillermo del Toro [como dos outros dois que ele fez em espanhol] é a força com que ele abraça esse gênero tão forte e tão incompreendido: o melodrama. Veja como se caracteriza Jacinto, o grande vilão do filme: "De todos los huérfanos,  tú eras siempre el más triste.  El más perdido.  Un príncipe sin reino."

Considerações irresponsáveis de uma Renata qualquer sobre Só Garotos da Patti Smith

  Só Garotos , da Patti Smith, era o que eu estava lendo antes do isolamento social começar. Minha amiga de apê trabalha como recepcionista numa unidade de saúde e, assim que a pandemia se oficializou, ela virou secretária especial da médica que atenderia somente os casos suspeitos de covid-19. Por esse e por outros motivos eu tive que arranjar um carro, fazer as malas com pressa e vir correndo para a cidade onde minha mãe está morando: se não, além de ter que lidar com meus próprios quadros de risco aumentados, não poderia visitar a mãe até que saísse uma vacina. Aí, na pressa e na falta de vontade de continuar lendo, eu acabei deixando o livro para trás.  Há poucos dias, eu estava zapeando pelo Instagram e vi uma bonita foto da Patti Smith com a máscara - assessório tendência - pendendo do bolso da calça preta. Não lembro se foi a revista New Yorker que postou, mas deve ter sido. A foto teve impacto em mim, sei lá por quê, e estou desde então matutando com meus botões o motivo de

Estátuas no chão

Recentemente um ex-aluno querido me mandou um texto de uma professora da sua atual universidade que causou polêmica. No seu texto ela critica enfaticamente a remoção de estátuas "polêmicas" pelo mundo afora a partir da explosão causada pela morte de George Floyd. Peguei pedaços do texto dela e escrevi comentários apontando alguns dos aspectos mais problemáticos do liberalismo europeu e aponto a ironia do texto ser produzido por uma pessoa vinda da periferia absoluta dessa Europa que ela enche a boca em chamar de "West" [ocidente]. “alleged offenses” This implies people are faking their outrage, which automatically dismisses their claims.   “there is no society without an ongoing conflict for social status between groups: that equalizes oppressors and oppressed as “two groups” This speaks of social classes, ethnic groups, etc. as if they were not fundamentally different and implies that the end [or at least the diminution] of oppression in any given society is impos

Minha tradução para "A cana dos outros" de João Cabral

A cana dos outros João Cabral de Melo Neto Serial e antes , 279-80 1 Esse que andando planta os rebolos de cana nada é do semeador que se sonetizou. É o seu menos um gesto de amor que de comércio; e a cana, como a joga, não planta: joga fora. 2 Leva o eito o compasso, na limpa , contra o mato, bronco e alheadamente de quem faz e não entende. De quem não entendesse por que só é mato este; por que limpar do mato, não da cana, limpá-lo. 3 Num cortador de cana o que se vê é a sanha de quem derruba um bosque: não o amor de quem colhe. Sanha fúria, inimiga, feroz, de quem mutila, de quem, sem mais cuidado, abre trilha no mato. 4 A gente funerária que cuida da finada nem veste seus despojos: ata-a em feixes de ossos. E quando o enterro chega, coveiro sem maneiras tomba-a na tumba-moenda : tumba viva, que a prensa. The Cane of Others trans. Paulo Moreira   1 Walking and scattering away sugarcane cuttings, he has none of the Sower of so many sonnets.   It’s less than a gesture of love; it’s a

15 coisas que deviam ser ensinadas na escola [e eu, se já as aprendi, aprendi sozinho nas horas vagas]

  1.      Análise de cores 2.      Análise de composição visual 3.      Prática formal de debates 4.      Leitura cerrada coletiva de poesia 5.      Noções básicas de elementos da narrativa 6.      Noções básicas práticas de tradução 7.      História dos povos indígenas nas Américas 8.      História da América Latina 9.      Noções básicas de morfologia do português 10.   Noções básicas de culinária brasileira 11.   Prática diária de alongamento 12.   Noções básicas de psicologia 13.   Estudo e debates sobre relações de gênero e etnia 14.   Introdução a todas as religiões importantes no Brasil 15.   Introdução às maiores religiões do mundo

Minha tradução para "Áporo"

Insatisfeito com as duas traduções que encontrei do "Áporo" de Carlos Drummond de Andrade, fiz outra. Claro que li atentamente  o "Insect" de John Nist   ( I n search of poetry,  69 ) e o "Áporo" de Rosemary Arrojo ( Oficina em tradução – Teoria na prática , 55-6 ), tentando aprender tanto com os acertos como com os equívocos das duas. Resumo aqui minha diferença em relação a eles tem a ver com a nossa noção de equivalência, do que precisa por ser essencial existir também no texto traduzido.  Não costumo fazer traduções de poesia para o inglês, por motivos óbvios. Mas a minha saiu assim: An insect bores bores with firm resolve piercing the ground to find no way out.   What to do, burnt out, in this sealed-off country, this entangled nighttime roots and iron rocks?   And lo, that maze (oh reason and riddle) quickly unravels:   in green, alone, non-Euclidian,             one orchid unfolds.  Aqui o original: Áporo  Um inseto cava   cava sem alarme   perfuran