"Ponta de Areia" é uma daquelas canções especiais dos anos 70. Especial por quê? A música popular, mesmo depois da indústria cultural, tem muito de repetição de motivos e ritmos convencionais, que já foram tocados antes. Assim, cada "nova" composição é uma recombinação de retalhos [as vezes só um par deles, as vezes apenas a reciclagem de um retalho só]. "Ponta de Areia" é tão "estranha" que parece ter sido composta na lua - basta seguir o trabalho rítmico de baixo e bateria para entender o que eu quero dizer. Estão misturadas tantas ideias musicais nessa pontinha de areia tão singela, ideias que parecem ter sido tiradas antes de tudo do violão e da voz de Milton Nascimento do que da escuta de algum disco velho empoeirado.
Além disso a letra de Fernando Brant, curtinha e telegráfica, fala de duas coisas que calam fundo a tantos mineiros. Afinal eu, que no fundo sou mineiro só ao meio, conheci centenas e centenas de mineiros de todos os tipos e origens que vivem o ano inteiro sonhando com o mar, sonhando em voltar à ponta de areia que fica no final de uma estrada que pode dar na Bahia ou no Espírito Santo ou até no Rio de Janeiro. Pessoas que me olhavam com espanto e incompreensão quando contava que tinha passado uma semana no Rio de Janeiro e não tinha nem passado perto de uma praia.
Além dessa ânsia pelo que está fora de Minas, este amor profundo pelo mar que o senso comum atribuiria a um povo habitante de uma ilha qualquer no meio do mar, os mineiros, alguns sem nem saber direito, vivem marcados por uma saudade bem parecida com a lusitana: uma saudade de raízes históricas profundas adubadas por um lenta decadência econômica de mais de um século de duração. Essa saudade é bem mais branda no sul do estado do que no centro [as minas] e no norte [as gerais ao oeste e as diamantinas ao leste]. Nas suas expressões mais infelizes essa saudade mineira gera intermináveis discursos pomposos e lacrimosos sobre grandes políticos e grandes tradições do passado. Mas nas suas expressões mais felizes como essa "Ponta de Areia", essa saudade mineira chora baixinho trens e estradas de ferro que não existem mais, enterrando cidadezinhas miúdas ainda mais murchas no meio de um nada: "o povo alegre que vinha cortejar maria fumaça não canta mais para moças, flores, janelas e quintais na praça vazia, um grito um ai casas esquecidas, viúvas nos portais".
Eu, mineiro ao meio, virei mineiro e meio vivendo fora de Minas. Mas não é preciso ser nem um pouco mineiro para engasgar com lágrimas ouvindo a "Ponta de Areia" do Milton. Talvez não seja nem preciso entender português.
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