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Showing posts from January, 2016

Segunda versão: dormindo estamos mortos pro mundo

dormindo estamos mortos pro mundo dormindo estamos mortos pro mundo não há dor não há mágoa não há pena se o mundo não quer dormir conosco não me diga que é nosso o problema nos deitamos antes que escureça acordamos no final da manhã terminamos a sesta quando cai a tarde hibernamos no fim de semana o pijama é nossa segunda pele a cama escura, nosso endereço certo ainda que o coração teime em bater seguimos impenitentemente dormentes, não há dor não há mágoa não há pena que nos entorpeça o prazer de não ser Em nome do Valium, Arte minha: Braços de Morfeu do Rivotril e do Lexotan com Champagne agradeço pela alface, pela aveia, pelo maracujá, pela cachaça e pela camomila na nossa mesa de todo dia. Peço auxílio aos santos Magnésio, Frontal, Lorax e Dalmadorm, e proteção às deusas Tranxilene, Maconha e Morfina. Que todos me embalem, homo, qui nocturno pollutus sit somnio  extra casta ad aeternum ,

Última entrevista de Sérgio Buarque de Holanda em 1981

Trechos de entrevista de Sérbio Buarque de Holanda que foi publicada postumamente em Novos Estudos CEBRAP N.° 69, julho 2004 Separei aqui umas coisas que me interessam e que provavelmente os historiadores não querem muito saber: "... não gosto da linguagem afetada. Gosto da linguagem seca, nítida, precisa, que é um traço característico dos autores modernistas. Mas não acredito que essa convivência com o modernismo tenha me ajudado a escrever bem no sentido gramatical. Às vezes tenho de ir ao dicionário para ver como se escreve uma palavra. Quem me ajudou muito foi João Ribeiro, crítico literário do Jornal do Brasil. Era um grande conhecedor de gramática, e com freqüência eu ia até ele tirar dúvidas de português. Ele dizia que o mais importante não era a correção, mas a eufonia. Achei esse conselho tão bom que guardei até hoje." "Lewis Hanke me disse que para escrever um livro sobre um país novo bastaria ter vivido nele por três meses: "Três meses ou mais de

Tradução: "Delirante" de Sarah Howe

Sarah Howe acabou de ganhar com o seu primeiro livro dois importantes prêmios na Inglaterra, o TS Eliot e o Young Writer of the Year. Celebrações e comemorações de nascimentos, prêmios, mortes e publicações só fazem sentido para mim como desculpas para conhecer ou conhecer melhor um trabalho interessante. A vida é curta e não tenho muita paciência nem para fofocas sem-graça nem para polêmicas aborrecidas nem para longos elogios emocionados. Então tratei de esboçar uma primeira tradução de um pequeno poema de Sarah Howe:  Delirante Conter-se talvez não passe de outra forma de necessidade. Sou ameixa, azul à meia-luz. Você é tigre que come as proprias patas. O dia em que casamos as árvores todas tremiam como se estivessem loucas – seja gentil comigo, você disse. Frenzied Maybe holding back is just another kind of need. I am a blue plum in the half-light. You are a tiger who eats his own paws. The day we married all the trees tr

Tradução de trechos de texto de Stuart Hall sobre Gramsci e Thatcher

--> Stuart Hall Li um texto interessante de Stuart Hall escrito na época do pesadelo Thatcher sobre as ideias de Gramsci [original em inglês aqui ]. Traduzi alguns trechos fundamentais com bastante liberdade e a pressa habitual com quase tudo que sai nesse meu pobre quintal virtual. Aí vai: 1. Creio que essa primeira passagem vale para o interesse intelectual honesto em qualquer candidato a "profeta do Velho Testamento", seja ele Marx, Foucault, Deleuze, Derrida e cia aparentemente ilimitada: "Não quero dizer que Gramsci tem as respostas ou possui a chave para nossos problemas atuais. Creio, sim, que devemos pensar nossos problemas de uma forma Gramsciana - que é uma coisa diferente. Não deveríamos usar Gramsci (como temos abusado por tanto tempo de Marx) como um profeta do Velho Testamento que, no momento correto, nos oferecerá uma passagem apropriada e consoladora a citar.” 2. Hall chama o projeto de Thatcher de "modernização regress

Cursos que não foram

Arrumando velhos papéis e relembrando tempos semi-antigos. Adaptei uma aula de introdução à narrativa que dei em inglês na UFMG como professor substituto e tentei emplacar um curso de contos em português que no fim das contas nunca foi dado por falta de interesse. Eis a lista dos contos e pequenos textos teóricos: --> Aula 1 Introdução – O que é narrativa de ficção? (1) Leitura: Kate Chopin – “A história de uma hora” (3) Extras: Pu-Sung-Ling – “Choei-yun” (6) Augusto Monterroso – “A Ovelha Negra” (8) I.L.Peretz – “O Golem” (9) Aula 2 O conto “clássico” – Decálogo del perfecto cuentista (10) Leitura: Saki – “A porta aberta” (11) Extras: Horacio Quiroga – “Travesseiro de penas” (13) Edgar Allan Poe – “Coração denunciador” (17) Jacopo de Varazze – “Santa Maria Egipcíaca” (21) Aula 3 Explorando fórmulas – A composite of a Romance Tip Sheet (23) Leitura: Nelson Rodrigues – “Casal de três” (27) Extras

Notas para livros impossíveis: Je suis un barbare soumis

Retrato de George Dyer no Espelho de Francis Bacon   Depois de morar quase 10 anos nos Estados Unidos, acho impressionante como alguns compatriotas meus se sentem tão à vontade em identificar-se com a Europa Ocidental. Essa Europa a que me refiro [cujo miolo central seriam Inglaterra, França, Alemanha] já olha com desprezo para os "moreninhos" espanhóis e portugueses e certamente ririam incrédulos se ouvissem qualquer brasileiro falar em "nossa" civilização ao referir-se à cultura ocidental. Só consigo me lembrar de um dia em que vi um belorizontino desprezando gente do norte de Minas exatamente nos mesmos termos em que certos paulistas desprezam todos os mineiros, os mesmos termos em que certos habitantes dos Estados Unidos desprezam paulistas e todos os outros istas e astas, anos e inos ao sul da fronteira com o México. Ou do dia em que testemunhei um paulistano tentar convencer um bando de estadounidenses incrédulos que o Brasil "ou pelo menos São Paulo&

Obituário: David Bowie

My Death David Bowie My death waits like an old roué: So confident, I'll go his way. Whistle to him and the passing time. My death waits like a Bible truth at the funeral of my youth. Are we proud for that and the passing time? My death waits like a witch at night as surely as our love is right. Let's not think about the passing time. But whatever lies behind the door, there is nothing much to do.  Angel or devil, I don't care for in front of that door there is you. My death waits like a beggar blind who sees the world through an unlit mind. Throw him a dime for the passing time. My death waits there between your thighs. Your cool fingers will close my eyes. Let's think of that and the passing time. My death waits to allow my friends a few good times before it ends. So let's think of that and the passing time. For whatever lies behind the door, there is nothing much to do. Angel or devil, I don't

Tradução: "Os teósofos" de Felisberto Hernández

O uruguaio Felisberto Hernández [1902-1964] Os teósofos Felisberto Hernández Os teósofos brincam de cabra-cega e se abraçam o tronco de uma árvore, dizem que é a cintura de uma jovem, e se lhes tiram o pano dos olhos, dizem que a jovem se transformou em árvore, e se lhes mostram a jovem, dizem que é uma reencarnação, e se a jovem diz que não, dizem que lhe falta fé. Original em espanhol pode ser lido aqui .

Cinema: A Velha a Fiar

O curta metragem "A Velha a Fiar", de Humberto Mauro, é de 1956. Quem faz a velha é Matheus Collaço, técnico da equipe de Humberto Mauro e funcionário do INCE, antecipando o look "velha coroca" do Psicose de Hitchcock. Além de pioneiro na hoje mui difundida arte de cativar espectadores com gatinhos e cachorrinhos, Humberto Mauro mostra que entendia tudo de montagem nessa brincadeira de criança despretensiosa. 

Poesia minha: um esboço para uma "Ode à Redondilha"

Ode à Redondilha a matéria prima de todo o meu canto cabe em cinco toques d’uma redondilha desde a minha infância quando eu escutava d’um canto da sala minha mãe cantando que você não vinha pela estrada nova não chegava hoje não chegava nunca minha mãe cantava como era triste a raiva, a mágoa com que a avó contava do seu casamento aos quatorze anos com um homem velho que não conhecia “eu brincava ainda” ela se trancava no quarto sozinha era em cinco toques que sua voz pulsava se desenrolando pela noite escura eram em cinco toques que se apresentava cada verso branco um golpe preciso de ponto em linha trêmula escultura traçada na luz e na sombra imensa sussurrada a gás de dois lampiões “tira a mão, menino, isso não é brinquedo” até os pés batiam cinco toques claros na tábua corrida da casa cansada balançando as pernas da mesa de cartas cujo feltro verde me esquentava a

Traduzindo Augusto Monterroso

  Jan de Bray (1627-1697) Ulisses e Penélope O tecido de Penélope ou quem engana a quem Augusto Monterroso   Há muitos anos atrás vivia na Grécia um homem chamado Ulisses que, apesar de ser bastante sábio, era também muito astuto. Ulisses era casado com Penélope, mulher bela e singularmente dotada cujo único defeito era sua desmedida afeição por tecer, costume graças ao qual conseguia passar longas temporadas sozinha. Diz a lenda que cada vez que o astucioso Ulises observava que, apesar de suas proibições, Penélope se preparava para começar outro de seus intermináveis tecidos, podia-se vê-lo à noite arrumando às escondidas suas botas e uma boa barca até que, sem dizer nada à sua esposa, ele saía a percorrer o mundo em busca de si mesmo. Dessa forma ela conseguia mantê-lo longe enquanto flertava com seus pretendentes, fazendo com que eles acreditassem que ela tecia enquanto Ulisses viajava, quando, na verdade, Ulisses viajava enquanto ela tec