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O que não está nos autos não está no mundo - Notas sobre a lei, a repressão e a religião no Brasil

No dia 11 de outubro 1890 a recém-criada República institui um novo Código Penal onde consta a possibilidade de reprimir falsas curas e mau espiritismo. Ao invés de negar a existência da magia, as instituições incentivam a população a denunciar os praticantes de magia "negra" ou feitiçaria. Dizia o artigo 157: "Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio e amor, inculcar curas de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim para fascinar e subjugar a credulidade pública". 

Seguindo Foucault, digamos a partir daí se inscreve no mundo da lei, a magia. Começa a luta pela assimilação espiritual do Afro no Brasil. Se a escravidão assimilava o africano ao mundo colonial através do chicote e da cachaça, a polícia vai assimilar o africano ao mundo brasileiro através da batida policial e da lista de instituições reconhecidas como de práticas "elevadas e honestas" (embranquecidas). 

"Trabalho, sessão, despacho, recebimento e consulta" - não seria mera coincidência o fato de serem esses termos do espiritismo, umbanda e das macumbas (candomblés e outros) do mundo jurídico/burocrático. Seria sincretismo? Premissas culturais comuns dos dois mundos no contexto brasileiro? Podemos tentar explicar a falta da necessidade de aspas no uso desses termos religiosos no mundo regulatório de várias maneiras - todas para mim soam um pouco forçadas - mas o fato é duro e está aqui, nos desafiando. 

Em 1904 o Juízo dos Feitos da Saúde Pública se especializa na repressão religiosa.

Diz João do Rio: "Vivi três meses no meio dos feiticeiros cuja vida se finge desconhecer, mas que se conhece na alucinação de uma dor ou da ambição [...] 
Em 1934 é criada a 1ª Delegacia Auxiliar, especializada, entre outras coisas, na repressão ao chamado "baixo" espiritismo.

O golpe militar de 1937 cria a Seção de Tóxicos, Entorpecentes e Mistificação dentro daquela 1ª Delegacia Auxiliar. 

Décadas de repressão policial fazem do Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro portador de uma coleção impressionante de artefatos religiosos chamada de "Coleção de Magia Negra" misturada a artefatos apreendidos em falsificações, jogo ilegal, tráfico de drogas, abortos clandestinos e outros. O acervo é tombado pelo então chamado SPHAN em 1938. Também fazem parte do acervo bandeiras e outros artefatos de grupos políticos subversivos. 

Filinto Müller exige que centros espíritas se registrem na Delegacia de Polícia Política em 1941. A ideia é separar fiéis "ignorantes e incultos", a quem caberia a repressão policial pura e simples, concebida como combate aos inimigos da nação. 
Só em 1983 - durante o governo Brizola - foi aberto o acesso às ocorrências policiais que se relacionam ao acervo apreendido.

Martin Luther King Jr. disse algo que me marcou profundamente: "Não posso fingir entender o universo moral; o arco é comprido e meus olhos não vão tão longe; não dou conta de calcular a curva e completar a figura com minha vista; posso adivinhá-la pela consciência. E pelo que vejo tenho certeza que esse arco se dobra na direção da justiça". Acho às vezes o otimismo dessa consideração tão medida absurdo; às vezes quero acreditar nele como quem acredita na voz de um profeta, apesar de não compartilhar nada da fé do pastor batista que ele era. Mas vejam que em 2020 o Museu da República no Rio de Janeiro recebeu 523 peças religiosas reunidas em 77 caixas da polícia para uma exposição bem mais respeitosa e com intenções de educar sobre nossas tradições religiosas. E naquele mesmo ano que acabou de acabar a Secretária de Estado da Polícia Civil assinou o termo de devolução de alguns dos mais daqueles artefatos, apreendidos entre 1899 e 1945, ao grupo militante “Liberte o Nosso Sagrado”.

Grande parte desse post são notas que fiz da leitura do livro Medo do Feitiço - Relações entre magia e poder no Brasil da antropóloga Yvonne Maggie Alves. 



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