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Antonio Vieira, contador de histórias e inspirador de Eça

 Num sermão de Vieira sobre os encantos e encantamentos do rosário, o pregador maravilhoso faz uma pequena pausa e o contador de histórias toma conta:

“No reino de Valença houve um fidalgo rico e moço, com que já está dito quais seriam os seus pensamentos. Deu em festejar com passeios públicos uma senhora casa­da, de igual ou maior qualidade, mas tão honesta como ilustre. Chegou a notícia ao marido, e não só para dissimular o seu agravo, mas para o vingar, com pretexto de passar os calores do estio no campo, se passou com toda a família a uma quinta. Anda­dos alguns dias, entrou em um aposento, onde estava só a mulher, deu volta à chave, e, tirando de um punhal, lhe mandou que escrevesse o que lhe ditasse. Respondeu a senho­ra, muito segura, que nem para a sua obediência eram necessários punhais, nem para a sua inocência havia temores. Escreveu, e o que continha o papel ditado, era estranhar ela ao fidalgo dos passeios o descuido de a não ver naquele retiro, avisando-o que, se era por falta de ocasião, naquela noite a tinham boa, por estar o marido ausente. Que fosse só, como o pedia o segredo, que acharia a porta do jardim aberta, e uma escada arrimada a uma janela; que subisse por ela, e seria bem recebido.

Mandada e entregue esta carta com as cautelas necessárias, já se vê qual seria o contentamento do moço, tão fácil de enganar, como cego. Deu o para­bém à sua fortuna, vestiu-se da melhor gala, e, tanto que foram horas, montando no cavalo de que mais se fiava, se pôs a caminho. Lembrou-se nele - que não foi pouco em tal ocasião - que ainda naquele dia não tinha rezado o Rosário, como costumava, e ao mesmo tempo em que o acabava de rezar, ouviu uma voz que lhe dizia: - Cavaleiro, pára. - Olhou, e, como não visse pessoa alguma, prosseguiu. E a voz outra vez: - Cavaleiro, pára, chega-te aqui. - Era este lugar da estrada junto à forca pública, donde, segundo as leis daquele reino, se não tiram os justiçados em todo um ano. E, parecendo-lhe, que dentro do cercado estaria quem lhe falava, apeou-se, tirou pela espada, entrou a reconhecer quem seria. Então lhe disse um dos enforcados que, por piedade cristã, lhe cortasse o baraço. Fê-lo assim, caiu o enforcado em pé, e, em agradecimento do benefício que tinha recebido, lhe pediu que o tomasse nas ancas, porque o havia de acompanhar naquela jornada. Resistiu o cavaleiro, respondendo que não podia ser, porquanto lhe importava ir só; mas foram tão vivas as razões que lhe deu o morto, que houve de condescender com elas, e foram ambos.

Chegados ao jardim, acharam a porta aberta e a escada arrimada, e, indo o fidalgo para subir, teve mão nele o enforcado. E, pedindo-lhe a capa e o chapéu: - Eu sou - disse - o primeiro que hei de provar esta aventura, para que se faça com toda a segurança. - Subiu, e não tinha bem entrado pela janela, quando se ouviu o ruído das armas, com que o marido e os criados o esperavam de mão posta, e foram tantas as estocadas com que o passaram de parte a parte, que como morto, e mais que morto, o lançaram pela mesma janela. Caiu outra vez em pé, e tornaram a montar ambos no mesmo cavalo. Desceram os de casa a enterrar secretamente o corpo, para que se não soubesse o caso e, como o não achassem, entenderam que não tinha vindo só, e que os criados o haviam retirado e, sem haver homicídio, se homiziaram todos. Quem viu ja­mais semelhantes encantos? Mas o morto, que caminhava nas ancas do vivo, lhe decla­rou quem era a encantadora e qual o instrumento.

Eu, senhor - disse o enforcado ao cavaleiro - sou, e estou tão morto, como vós havíeis de estar a esta hora, se a Mãe de Deus vos não livrara; e livrou-vos, porque todos os dias rezáveis o seu Rosário. Esta que em mim parece vida, e esta voz que ouvis, tudo é fantástico; por isso me não mataram, com tantas feridas e espadas, os inimigos que para a vossa morte estavam aparelhados. Se vós subíreis pela escada, vós havíeis de ser o morto, e não só no corpo, mas na alma, porque a porta que vos esperava aberta, não era a do jardim, senão a do inferno donde vos não podiam livrar os passos, e tensão que leváveis. Agradecei a vida e a salvação a quem a deveis, e a mim - porque já tinham chegado ao posto da forca - me restituí ao lugar donde me tirastes. - Com estas palavras nos ouvidos, e com esta declaração do que, sem o  entender, tinha visto, confuso e assombrado se retirou o fidalgo moço à sua casa, mas tão outro, e com tão diferente juízo, como se naquelas poucas horas se tiveram passa­do muitos anos. Deu tal volta à vida, que a todos e a si mesmo, mais parecia encanta­do que convertido. Os que o tinham conhecido escândalo da cidade, pasmavam de o ver o maior exemplo dela: os que imaginavam que o tinham morto, criam que ressuscitara, e ele, que só sabia o que passara, vendo-se com alma por meio de um cadáver, vivo por meio de um morto, e tirado do inferno por meio de um fantasma caído da forca e depois pendurado nela, tudo isto, que mais pareciam sonhos, julgava haverem sido encantamentos. E verdadeiramente assim eram, porque ele, por meio do Rosário, tinha encantado a Mãe de Deus, e a Senhora, pelo merecimento do mesmo Rosário, o tinha transformado e encantado a ele.”

Eça de Queiróz tomou o conto de Antonio Vieira e o fez muito seu em "O defunto".


Comments

Diego said…
Que delícia de história!
Para colocar numa antologia de contos da língua portuguesa ou de literatura barroca.

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