Rivane Neuenschwander, Life on Mars
Exame de rotina
Presta a atenção: o mundo é um moinho.
Cartola
Laura tem 16 anos. Chega sozinha ao consultório ginecológico para uma consulta de rotina. A sala de espera é fria e desconfortável, decorada pela mesa marrom da secretária vestida com um jaleco dois números maior que o seu, meia dúzia de cadeiras de plástico e um único quadro, uma abstração toscamente pintada em azul e prateado, pregado alto demais na parede. Todas as cadeiras exceto uma já estão ocupadas por meninas como Laura e mulheres de várias idades, todas caladas, folheando revistas velhas e amarrotadas ou simplesmente esperando em silêncio, olhos fixos no nada.
Após uma hora e meia de espera a secretária chama Laura pelo nome completo. A menina entra no consultório e é dirigida até o banheiro para despir-se e colocar o avental branco aberto na frente. Sem cumprimentá-la, a médica começa o exame. A paciente se deita, a médica insere o espéculo na vagina – por trás dos óculos observa friamente o sexo da menina com uma atenção ao mesmo tempo intensa e profundamente impessoal. Enquanto segue com o exame a ginecologista pergunta com o tom neutro de uma secretária eletrônica se Laura é sexualmente ativa. Ela responde que sim. A médica interrompe o exame, deixando o espéculo dentro da vagina de Laura, os pés da menina ainda presos nos estribos e suas pernas desajeitadamente afastadas, aproxima-se da outra ponta da mesa onde a cabeça da paciente está recostada em um travesseiro fino e murcho e começa a falar:
“A mocinha tem a mínima idéia do que está fazendo com a própria vida, dos vários riscos que uma vida sexualmente ativa fora do casamento traz para uma moça da sua idade, do profundo desgosto que pode trazer aos seus pais se acontecer de você contrair por aí uma doença sexualmente transmissível ou engravidar ou – o tom de voz da médica sobe e torna-se um pouco mais áspero – a mocinha não deve nem sequer entender do que é que eu estou falando, não é mesmo? É como se nós falássemos uma outra língua que vocês não entendem. Vocês todas aparecem aqui sempre iguais, se parecem mais um bando de bichos, de gente de outro planeta, fazendo o que bem entendem sem querer nem parar para pensar nas conseqüências dos seus atos e vai ver que os seus pais são ainda piores que você e seu parceiro, dois inconseqüentes, se é que você se contenta com um parceiro só. Talvez seus pais até fiquem contentes se você – talvez fosse até melhor para eles se a mocinha – provavelmente você nem sabe quem é o seu pai biológico e a sua mãe tenha saído por aí parindo um moleque encardido atrás do outro desde os 13 anos de idade, cada vez com um parceiro diferente, feito um bicho, um coelho, quem sabe ela anda por aí até hoje, não é mesmo? A mocinha, sua mãe, suas amigas não devem ter a menor idéia de nada do que eu estou falando, não sabem o que é ser a melhor aluna da turma, uma das melhores da escola, desde os sete anos de idade, esforçando-se ano após ano cada vez mais até o ano do vestibular e depois estudando ainda mais feito uma louca quase dez anos seguidos dia e noite quase sem descanso para depois vir parar aqui nessa espelunca, nesse consultoriozinho vagabundo de periferia de terceiro mundo, nesse fim de mundo da periferia de Belo Horizonte, vendo e ouvindo uma imbecil atrás da outra o dia inteiro todos os dias fazendo as mesmas imbecilidades e falando as mesmas besteiras, dando as mesmas respostas idiotas, as mesmas desculpas esfarrapadas, com o mesmo português indigente de quem mal sabe ler muito menos escrever o nome ou um par de frases que seja num pedaço de papel e gasta o tempo livre assistindo a todo o tipo de lixo que a televisão pode oferecer, usando roupas de prostituta e se comportando como prostitutas sem nem sequer ter a presença de espírito de ganhar algum dinheiro em troca e se engravidando e depois abortando pelos cantos ou pior, parindo manadas de filhos encardidos com a cara cheia de catarro, filhos de um bando de débeis mentais que não têm e nem nunca vão ter um emprego decente na vida, ignorantes que não estudam nem querem estudar, que vivem bêbados ou drogados, vagabundeando, roubando ou fazendo coisa pior pelas ruas do bairro ou pelo centro quando arrumam um trocado para uma passagem de ônibus e que somem espantados ao primeiro sinal de que as imbecis com as quais eles viviam se esfregando por aí em qualquer canto escuro na rua finalmente engravidaram, só para continuarem agarrando e engravidando outras idiotas em outros cantos escuros do outro lado da cidade, isso se não ficarem por aqui no bairro mesmo, sempre achando que engravidaram as namoradas por ‘falta de sorte,’ rindo com a boca cheia de dentes tortos ou podres, com um boné desbotado mal-enfiado na cabeça ensebada, uma camisa apertada com alguma imbecilidade escrita em inglês que eles nem sonham entender, uma tatuagem mal-feita no braço e um par de jeans fedorentos arrastando a barra pelo chão. E eu aqui, falando sozinha, falando com as paredes. Não, definitivamente nós não pertencemos ao mesmo planeta, não é mesmo? A mocinha não deve ter a menor idéia do que eu estou falando, não é mesmo? E nem quer saber e tem raiva de quem sabe, não é mesmo?”
A médica encerra seu discurso. Sem esperar resposta, volta bruscamente ao outro canto da mesa e termina o exame de Laura em cinco minutos sem lhe dirigir a palavra de novo nem uma vez, novamente imersa em um estado de completa indiferença.
Laura também não diz nada. O rosto permanece impassível. Uma gota de suor escorre lentamente pelas têmporas até sumir no cabelo forte, grosso, puxado num rabo de cavalo perfeito, desprendendo um aroma suave almiscarado de sabão.
Presta a atenção: o mundo é um moinho.
Cartola
Laura tem 16 anos. Chega sozinha ao consultório ginecológico para uma consulta de rotina. A sala de espera é fria e desconfortável, decorada pela mesa marrom da secretária vestida com um jaleco dois números maior que o seu, meia dúzia de cadeiras de plástico e um único quadro, uma abstração toscamente pintada em azul e prateado, pregado alto demais na parede. Todas as cadeiras exceto uma já estão ocupadas por meninas como Laura e mulheres de várias idades, todas caladas, folheando revistas velhas e amarrotadas ou simplesmente esperando em silêncio, olhos fixos no nada.
Após uma hora e meia de espera a secretária chama Laura pelo nome completo. A menina entra no consultório e é dirigida até o banheiro para despir-se e colocar o avental branco aberto na frente. Sem cumprimentá-la, a médica começa o exame. A paciente se deita, a médica insere o espéculo na vagina – por trás dos óculos observa friamente o sexo da menina com uma atenção ao mesmo tempo intensa e profundamente impessoal. Enquanto segue com o exame a ginecologista pergunta com o tom neutro de uma secretária eletrônica se Laura é sexualmente ativa. Ela responde que sim. A médica interrompe o exame, deixando o espéculo dentro da vagina de Laura, os pés da menina ainda presos nos estribos e suas pernas desajeitadamente afastadas, aproxima-se da outra ponta da mesa onde a cabeça da paciente está recostada em um travesseiro fino e murcho e começa a falar:
“A mocinha tem a mínima idéia do que está fazendo com a própria vida, dos vários riscos que uma vida sexualmente ativa fora do casamento traz para uma moça da sua idade, do profundo desgosto que pode trazer aos seus pais se acontecer de você contrair por aí uma doença sexualmente transmissível ou engravidar ou – o tom de voz da médica sobe e torna-se um pouco mais áspero – a mocinha não deve nem sequer entender do que é que eu estou falando, não é mesmo? É como se nós falássemos uma outra língua que vocês não entendem. Vocês todas aparecem aqui sempre iguais, se parecem mais um bando de bichos, de gente de outro planeta, fazendo o que bem entendem sem querer nem parar para pensar nas conseqüências dos seus atos e vai ver que os seus pais são ainda piores que você e seu parceiro, dois inconseqüentes, se é que você se contenta com um parceiro só. Talvez seus pais até fiquem contentes se você – talvez fosse até melhor para eles se a mocinha – provavelmente você nem sabe quem é o seu pai biológico e a sua mãe tenha saído por aí parindo um moleque encardido atrás do outro desde os 13 anos de idade, cada vez com um parceiro diferente, feito um bicho, um coelho, quem sabe ela anda por aí até hoje, não é mesmo? A mocinha, sua mãe, suas amigas não devem ter a menor idéia de nada do que eu estou falando, não sabem o que é ser a melhor aluna da turma, uma das melhores da escola, desde os sete anos de idade, esforçando-se ano após ano cada vez mais até o ano do vestibular e depois estudando ainda mais feito uma louca quase dez anos seguidos dia e noite quase sem descanso para depois vir parar aqui nessa espelunca, nesse consultoriozinho vagabundo de periferia de terceiro mundo, nesse fim de mundo da periferia de Belo Horizonte, vendo e ouvindo uma imbecil atrás da outra o dia inteiro todos os dias fazendo as mesmas imbecilidades e falando as mesmas besteiras, dando as mesmas respostas idiotas, as mesmas desculpas esfarrapadas, com o mesmo português indigente de quem mal sabe ler muito menos escrever o nome ou um par de frases que seja num pedaço de papel e gasta o tempo livre assistindo a todo o tipo de lixo que a televisão pode oferecer, usando roupas de prostituta e se comportando como prostitutas sem nem sequer ter a presença de espírito de ganhar algum dinheiro em troca e se engravidando e depois abortando pelos cantos ou pior, parindo manadas de filhos encardidos com a cara cheia de catarro, filhos de um bando de débeis mentais que não têm e nem nunca vão ter um emprego decente na vida, ignorantes que não estudam nem querem estudar, que vivem bêbados ou drogados, vagabundeando, roubando ou fazendo coisa pior pelas ruas do bairro ou pelo centro quando arrumam um trocado para uma passagem de ônibus e que somem espantados ao primeiro sinal de que as imbecis com as quais eles viviam se esfregando por aí em qualquer canto escuro na rua finalmente engravidaram, só para continuarem agarrando e engravidando outras idiotas em outros cantos escuros do outro lado da cidade, isso se não ficarem por aqui no bairro mesmo, sempre achando que engravidaram as namoradas por ‘falta de sorte,’ rindo com a boca cheia de dentes tortos ou podres, com um boné desbotado mal-enfiado na cabeça ensebada, uma camisa apertada com alguma imbecilidade escrita em inglês que eles nem sonham entender, uma tatuagem mal-feita no braço e um par de jeans fedorentos arrastando a barra pelo chão. E eu aqui, falando sozinha, falando com as paredes. Não, definitivamente nós não pertencemos ao mesmo planeta, não é mesmo? A mocinha não deve ter a menor idéia do que eu estou falando, não é mesmo? E nem quer saber e tem raiva de quem sabe, não é mesmo?”
A médica encerra seu discurso. Sem esperar resposta, volta bruscamente ao outro canto da mesa e termina o exame de Laura em cinco minutos sem lhe dirigir a palavra de novo nem uma vez, novamente imersa em um estado de completa indiferença.
Laura também não diz nada. O rosto permanece impassível. Uma gota de suor escorre lentamente pelas têmporas até sumir no cabelo forte, grosso, puxado num rabo de cavalo perfeito, desprendendo um aroma suave almiscarado de sabão.
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