Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir essa mesma coisa mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele pôr muito reparo no caboclo e na mãe dele. O que geralmente atrapalha o médico é que ele geralmente acha que sabe mais da fome do caboclo que o próprio caboclo e a mãe do caboclo e por isso ele não presta atenção nos dois e por isso ele acaba que sabe de uma fome que é igual à fome que qualquer outro médico em qualquer outro hospital sabe. Mais longe ainda que esse médico fica o jornalista que aparece do nada na porta do hospital para ver e falar com o caboclo e a mãe dele e o médico para depois escrever sobre eles no jornal. O jornalista é geralmente pior só porque geralmente ele acha que já sabe o que o caboclo, a mãe dele e o médico sabem e que por isso sabe mais que eles todos. Agora, a pior raça mesmo de todas é a do fé-da-puta que vem escrever sobre a história da fome do caboclo, da mãe do caboclo, do médico e do jornalista porque esse já ficou tão longe, mas tão longe, que o que ele escreve ainda parece ser mas já não tem quase nada que ver com aquela fome do caboclo: o que ele escreve é essa tal de literatura. Não custa lembrar que se a fome passar nem o caboclo sabe mais a mesma coisa que sabia quando passava fome. O que ele tem depois que a fome passa e só uma idéia (mais uma idéia) do que era a fome que ele um dia passou. Quando ele pára de passar fome e ainda acha que sabe o que é passar fome do mesmo jeito que o outro caboclo que ainda passa fome ele arrisca pretensão quase tão grande quanto a do médico e a do jornalista; pior só a pretensão do bosta do escritor.
Monteiro Lobato conta em "O engraçado arrependido" a história trágica de um homem que não consegue se livrar do papel de palhaço da cidade, papel que interpretou com maestria durante 32 anos na sua cidade interiorana. Pontes é um artista, um gênio da comédia e por motives de espaço coloco aqui só o miolo da introdução em que o narrador descreve o ser humano como “o animal que ri” e descreve a arte do protagonista: "Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, e...
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