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Poesia Prosaica Minha: Uma gota de fenomenologia

Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir essa mesma coisa mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele pôr muito reparo no caboclo e na mãe dele. O que geralmente atrapalha o médico é que ele geralmente acha que sabe mais da fome do caboclo que o próprio caboclo e a mãe do caboclo e por isso ele não presta atenção nos dois e por isso ele acaba que sabe de uma fome que é igual à fome que qualquer outro médico em qualquer outro hospital sabe. Mais longe ainda que esse médico fica o jornalista que aparece do nada na porta do hospital para ver e falar com o caboclo e a mãe dele e o médico para depois escrever sobre eles no jornal. O jornalista é geralmente pior só porque geralmente ele acha que já sabe o que o caboclo, a mãe dele e o médico sabem e que por isso sabe mais que eles todos. Agora, a pior raça mesmo de todas é a do fé-da-puta que vem escrever sobre a história da fome do caboclo, da mãe do caboclo, do médico e do jornalista porque esse já ficou tão longe, mas tão longe, que o que ele escreve ainda parece ser mas já não tem quase nada que ver com aquela fome do caboclo: o que ele escreve é essa tal de literatura. Não custa lembrar que se a fome passar nem o caboclo sabe mais a mesma coisa que sabia quando passava fome. O que ele tem depois que a fome passa e só uma idéia (mais uma idéia) do que era a fome que ele um dia passou. Quando ele pára de passar fome e ainda acha que sabe o que é passar fome do mesmo jeito que o outro caboclo que ainda passa fome ele arrisca pretensão quase tão grande quanto a do médico e a do jornalista; pior só a pretensão do bosta do escritor.

Comments

Gostei disso. Mas eu seguiria na mesma linha, relativizando talvez a pretensão do jornalista e do médico, porque estão "malvados" e isso lembra um dualismo melodramático. Quero dizer: por que o escritor resolve falar da fome do caboclo? por que ele não fala da própria fome? ele sabe qual é, transforma a fome do outro em metáfora da própria? ou simplesmente não sabe, fala aquilo porque acha que é importante, porque ele quer ser artista para se diferenciar do caboclo que está morrendo do fome como ele, e ele morre de medo daquilo?
Pois eh, Sabina, o negocio eh que o artista vive da relacao com o outro, mesmo se ele falar de si mesmo ele tem que falar de si mesmo como outro. Se nao vira narcisismo, entende? Eu nao acho que escrever sobre a gente mesmo resolve o problema de lidar com essas distancias todas entre as coisas que a gente representa e a gente mesmo. Mas o medico e o jornalista [sao todos aqui personagens de papelao, sem profundidade nenhuma] nao sabem pq acreditam no poder da neutralidade - o artista [meu alter-ego] sabe que essa neutralidade pode ter o poder que for que nao adianta - a experiencia eh algo que a gente nao pode compartilhar plenamente com ninguem.
W. Oliveira said…
Concordo contigo Paulo. Mas penso que a arte não deva se restringir a ser apenas um alimento para aquela outra fome, que tortura, mas tortura menos, convenhamos, que a fome do caboclo. Penso que a arte deva questionar e problematizar o que há de concreto nas fomes e sedes do homem. De fato,sabemos que muitas vezes isto já foi feito, mas nem sempre é assim. Acho resumido demais para a arte pretender apenas saciar uma fome, enquanto há potência para bem mais.
bem, acho que: a) depende da maneira de "escrever sobre a gente mesmo"; b) a leitura é maneira de compartilhar a experiência.

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