Estou lendo um texto interessantíssimo sobre Don Quixote e, como quase todo texto interessantíssimo, ele tem pequenas pérolas espalhadas por ele, pequenos pedaços de reflexão que saltam do texto e vão se pregar em outro canto da minha cabeça – escrevi, por exemplo, um par de parágrafos sobre os filmes de Iñárritu depois de uma dessas passagens, sobre uma espécie de “estética narrativa da interrupção”.
Ainda sobre esse texto, um a referência muito instigante: um par de definições interessantíssimas de um par de críticos que eu não conhecia [Anthony G. Amsterdam e Jerome Bruner]:
Para eles, o Script conta a norma, os clichês que saem do que as pessoas em geral acreditam na sociedade de um dado tempo e espaço [o monstro, o tarado, o herói, a mãe, o passional, etc]. Os scripts passam por verdade porque, apesar de às vezes bastante inverossímeis, correspondem às expectativas das pessoas em uma dada situação. As interrupções chamam atenção para o absurdo, as contradições desses scripts; essas interrupções são aquilo que transforma aqueles clichés e aqueles personagens de cartolina dos scripts marcados em atores em uma narrativa que perturba, questiona, irrita. Aí está a estética do documentário Ônibus 174 do Padilha, por exemplo. Ou pelo menos de parte do documentário.
No imaginário popular o script do seqüestro do ônibus pelo Sandro Barbosa do Nascimento era claro: um negro drogado e completamente enlouquecido exigia armas e dinheiro, alegava estar possuído pelo demônio e martirizava covardemente meia-dúzia de moças indefesas que ele prendera dentro do ônibus em plena luz do dia em “quatro horas e meia de terror com transmissão direta pela TV” (Jornal do Brasil, 13-06-2000). O filme interrompe várias vezes esse script para revelar uma narrativa mais complexa e instigante por trás dele. Essa narrativa se recusa a reduzir essa história a um outro script complementar do primeiro; as interrupções aqui não servem para inocentar o seqüestrador e transferir Sandro para o campo das vítimas da violência, seguindo as leis da economia narrativa que domina a cultura brasileira contemporânea [a do melodrama das telenovelas]. A narrativa provoca, irrita, confunde justamente porque impossibilita o brasileiro comum a formatar a história do seqüestro do ônibus 174 em qualquer um dos scripts que formatam a compreensão da violência urbana, particularmente no Rio de Janeiro.
Ao mesmo tempo o filme aceita uma outra parte do script: o filme de Padilha decide não perseguir com a mesma persistência e eloqüência narrativa e retórica um aspecto fundamental da história dos eventos daquele dia. Os atiradores de elite da policia tiveram várias possibilidades de acertar Sandro sem maiores riscos para as vitimas e não o fez. Não o fez porque “alguém” ligou para o comandante da operação e deu ordens expressas de que, contrariando a análise dos policiais naquele momento, não se atirasse no seqüestrador. Mas quem partiu essa ordem que os policiais entrevistados no filme condenam como incorreta do ponto de vista “técnico”? O governador? O secretário de segurança? O filme, antes tão eloqüente em sua confiança de investigar e revelar a verdade dos fatos a respeito da vida de Sandro do Nascimento, titubeia e silencia, indo pouco além do que diziam os jornais e televisões na época.
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