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Ainda mais uma vezinha, Joyce

No dia 29 de maio de 2002, a ministra da cultura da Irlanda chegou no aeroporto de Dublin, onde o primeiro ministro e uma multidão de repórteres esperavam. Descendo as escadas do avião ela segurava como um relicário uma caixa com um manuscrito de Ulysses e as provas de Finnegans Wake compradas pela bagatela de 15 milhões e meio de dólares. O avô dessa ministra, que qualificou sua chegada com os manuscritos como “um evento monumental para a história literária e cultural da Irlanda,” era Éamon de Valera, figura central na política irlandesa durante boa parte do século XX, quando as obras de Joyce eram proibidas na Irlanda [nascido em Nova Iorque, o sobrenome da família vem do pai de Éamon, um cubano]. Num artigo recente do The New York Review of Books, Fintan O’Toole resumiu assim essa situação paradoxal:

“For those of us who had known the thrill of reading Joyce when he was still the scandalous author of dirty books, this was a bittersweet moment. It was good, of course, that one of the greatest of Irishmen was at last being honored in his own country, and especially in the city that was, even after he left it for the last time in 1912, his imaginative universe. But Joyce really is dirty and scandalous. Those precious pages, for each of which the Irish government paid around $30,000, stink of flesh, ordure, and bodily fluids. They are steeped in forbidden thoughts and dishonorable desires, in secrets, blasphemy, and sex. They were not made to become holy relics. Censorship and opprobrium may have been a cruel fate for the living Joyce, but elevation to sainthood after his death is not necessarily a better one.”

Por essas e outras eu nunca me animo muito com comemorações oficiais em museus e feiras de livros e outras cerimônias solenes com trófeus e medalhas, principalmente quando alguém enche o peito para cantar loas celestiais a figuras literariamente queridas como Guimarães Rosa, William Faulkner e Juan Rulfo.  

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