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escavando notas: opilados e alugados





Não era só o legislativo que se mexia para apaziguar a crise da falta de escravos com o fim do tráfico. Nosso inventivo setor privado também apresentava suas soluções. Um possível sintoma da falta de escravos no mercado em 1860 era a aparição de empreendedores dedicados a explorar ao máximo os escravos à disposição. como esse aí em cima, uma espécie de retificador de gente. Forçados a andar sempre descalços, muitos escravos sofriam com doenças infecciosas como a opilação [atualmente ancilostomíase]  que "contribuía para a debilitação geral e provocava a 'franqueza' ou a 'preguiça' de que os senhores tanto reclamavam." O tratamento aplicado aos opilados que o anúncio aí em cima procurava era provavelmente o seguinte: " ... substituísse por uma dieta suculenta e animalizada a dieta farinácea; que forma geralmente a base do regime dos opilados; administrar a limalha de ferro na dose de doze grãos até uma oitava por dia, aumentando progressivamente as primeira doses; dar meia onça até uma onça de xarope antiescorbútico do Portal, sem adição de muriato supra-oxigenado de mercúrio, ou substituir pelo elixir amargo de Peyrilhe, e associar à estes medicamentos todos os recursos higiênicos necessários ...” [83] Acabo de citar o Manual do fazendeiro ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros de autoria de Jean-Baptista Alban Imbert, que aparece em “Das páginas ao corpo: escravidão e práticas de saúde em manuais de fazendeiros do século XIX”, dissertação de mestrado de de Kassia Rodrigues. 



Mas talvez o tal dono do negócio não passasse de um atravessador de escravos. Afinal, no mesmo dia, um pouco mais abaixo nos classificados, o mesmo endereço [rua do parto 120] oferecia também o serviço de gerente de uma espécie de agência locadora de escravos, singelamente descrita como "descanso para os senhores de escravo":


Machado de Assis nos faz passar pela mesma rua do parto, acompanhando um outro jovem empreendedor, Cândido, protagonista do conto "Pai contra Mãe":


"Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos . As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata."

Miécio Táti nos informa que a Rua do Parto é a atual São José, entre a rua Rodrigo Silva e o Largo da Carioca no centro. Quando passar por lá da próxima vez, não rezarei porque não sou de rezar, mas juro que pensarei nas almas dos opilados e alugados de 1860 da Rua do Parto. 

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