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Prosa minha: Saudades

Trilha sonora para a leitura:


Saudades

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
            Álvaro Campos


O Arrudas, por exemplo, é muito mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia. Conheci um sujeito que caiu dentro do Arrudas e ficou meses tratando tifo e outras coisas. Mas o Arrudas para mim não é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia simplesmente porque não corre minha aldeia. Poucos sabem pronde vai e donde vem o ribeirão da minha aldeia e poucos já deitaram (como eu) os pés descalços na água gelada do ribeirão da minha aldeia. Ele pertence a menos gente e acho que nunca foi cantado por ninguém. Nem por isso é menos sujo.

Foto minha: Crateras
O ribeirão da minha aldeia está agora quase todo sepultado debaixo do asfalto para não ferir o direito de ir e vir pelas duas artéreas de asfalto da minha aldeia (chamadas, naturalmente, do ouro, a que sobe, e chumbo, a que desce). Sepultado debaixo do asfalto também para não molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia quando chegam as enxurradas do verão. Quem passa pelas ruas da minha aldeia hoje, se prestar muita atenção, nota só as grades pelas quais o ribeirão da minha aldeia respira, bebe a água da chuva e come a poeira dos carros.

Sou íntimo dos fantasmas que me apontam com os dedos magros tudo o que já não está aqui. Sei das casas da família de Dona Ana, onde hoje assenta o sopé da margem direita do bairro Mangabeiras. Sei dos retalhos do Pindura-a-Saia hoje debaixo de meia dúzia de prédios, do asfalto, do clube, da faculdade, do Mercado, da CEMIG e – amarga ironia – do IAB. Sei do velho asilo Santa Isabel donde brotou um gigantesco apart-hotel de nome inglês. Sei das sombras tenebrosas da Copacabana, que antes conviviam com os tiros da elite caçadora das Alterosas e agora vivem soterradas embaixo daquele tenebroso clube onde diz-que só entra preto pela porta de serviço. Mas do que eu acho que sei mais é das águas da minha aldeia. Sei até do poço onde o povo ia lavar roupa na esquina de Palmira e Herval, que dali escorria até o ribeirão da minha aldeia


A memória é o que há além do que cimento e asfalto pretendem apagar. Lembrar é fortuna daqueles que sabem encontrar. Na miséria desse inverno gelado, trancado no meu trabalho estéril e ingrato, já não penso em mais nada que me faça sofrer: fecho os olhos e estou agora, de novo, em pé, nas pedras da bica do ribeirão da minha aldeia recebendo a benção das suas águas geladas. Vivo.

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 que pertence a menos gente 
 mas nem por isso é mais livre ou menos sujo. O ribeirão da minha aldeia 
 foi sepultado num túmulo de pedra para não ferir os olhos nem molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia, mas, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, 
 a memória é o que há para além do riberão da minha aldeia e é a fortuna daqueles que a sabem encontrar. Não penso em mais nada na miséria desse inverno gelado estou agora de novo em pé sobre o ribeirão da minha aldeia.

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