Skip to main content

Sobre o Santuário de Faulkner


 


Depois de escrever uma obra-prima que acabou vendendo quase nada (The Sound and The Fury), casado, dono de uma casa de fazenda caindo aos pedaços e duro de dar dó, Faulkner resolveu chutar o balde: 

Comecei a pensar em um livro em termos de dinheiro… tentei adivinhar o que uma pessoa no Mississippi acha que são os assuntos do momento, escolhi os que me pareciam os mais prováveis e inventei uma história, a mais escabrosa que eu conseguisse imaginar. 

Conta a lenda que, quando leu o primeiro manuscrito de Sanctuary, o editor Harrison Smith teria dito “pelo amor de Deus, eu não posso publicar isso. Vamos acabar os dois sendo presos!” Não era a primeira nem a última vez em que Faulkner tinha um manuscrito seu rejeitado. O escritor simplesmente deu de ombros e foi escrever As I Lay Dying nos intervalos quando trabalhava alimentando de carvão a caldeira da Universidade do Mississippi. 

 Qual foi a surpresa de Faulkner quando um tempo depois recebeu de Harrison Smith as provas de Sanctuary! Ainda completamente duro, Faulkner negociou com seu editor para revisar o romance, pagando do próprio bolso metade dos custos. A reescrita atendia simplesmente a critérios estéticos, não morais. Na verdade, ao invés de tornar Santuary menos escandaloso, Faulkner acrescentou ainda um ultraviolento linchamento [de um homem inocente, é claro]. 

O que não falta em Sanctuary é escândalo: tensões incestuosas entre irmãos, uma criança que já nasce com sífilis e se torna um monstro sociopata, assassinatos vários, muito contrabando, sequestros, prostituição, corrupção judicial e política, hipocrisia e um estupro brutal perpetrado por um impotente com uma espiga de milho. 

Sanctuary não chegou a se transformar num best-seller, mas foi por muitos anos o livro de Faulkner que mais vendeu. Não era incomum jornalistas o identificarem como “o autor de Sanctuary” e era o único romance que não estava fora de catálogo quando Faulkner ganhou o Nobel em 1949. 

O fato é que Sanctuary é escrito na mesma prosa surpreendente de todos os grandes romances de Faulkner. Falo em surpresa porque Faulkner descreve as coisas usando adjetivos e advérbios os mais inusitados para construir imagens ao mesmo tempo estranhas e precisas. Por exemplo, na corte de Jefferson, durante um momento tenso de um julgamento, o narrador diz que “the room began to hum with shrill, hushed talk” [292]. A sala zumbe [hum] com conversas que são ao mesmo tempo estridentes [shrill] e abafadas [hushed]. Em outro momento algumas páginas mais para frente, o auê de uns cachorros fora de casa é descrito assim: “beyond the closed door the dogs set up a falsetto uproar” [300]. Alguém já ouviu algo assim: “para lá da porta fechada os cachorros arrumam/organizam uma polvorosa em falsete”? 

Além disso, Faulkner sempre tem um ouvido apuradíssimo para criar em cima das cadências irônicas e poéticas do vernáculo do sul dos Estados Unidos. Uma senhora se queixa dos jovens de hoje em dia dizendo “hoje em dia o que a gente tinha que casar pra aprender os jovens aprendem primeiro para depois casar” [154]. O advogado adverte seu cliente: “você não está sendo julgado pelo bom senso. Você está sendo julgado por um júri” [157]. Em outro momento de exasperação, um personagem exclama: “Deus do céu, às vezes eu acho que nós somos todos crianças, exceto, é claro, as próprias crianças [336]. 

 A inspiração para o enredo de Sanctuary era dos anos 20. Em suas andanças pelos inferninhos de Memphis, Faulkner tinha ouvido de uma prostituta casos sobre um gangster local apelidado Popeye que era impotente, mas usava uma espiga de milho para violar mulheres. Memphis fica no Tennessee, mas é a cidade grande mais próxima da cidade natal de Faulkner no norte do Mississippi. No cosmos inventado por Faulkner, Memphis é sempre um antro de aventuras sexuais e etílicas. A raízes da ficção de Faulkner estão sempre firmemente plantadas na cultura e na história da sua terra natal e retrabalhadas criativamente com ousadia e verve modernista. 

 Em Oxford, Mississippi, os livros do escritor mais conhecido da cidadezinha eram vendidos na farmácia. Exemplares de Sanctuary costumavam sair da farmácia de Mac Reed cuidadosamente embrulhados em papel pardo. Uma parceira de carteado chegou a perguntar à respeitável senhorinha Maud, a mãe de Faulkner: “Mas por que é que o Bill escreveu um livro assim?!” Contam que Maud Faulkner respondeu secamente, “meu Billy escreve o que ele acha que deve escrever” e nunca mais falou com a tal mulher. 


Comments

Popular posts from this blog

Contos: "O engraçado arrependido" de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato conta em "O engraçado arrependido" a história trágica de um homem que não consegue se livrar do papel de palhaço da cidade, papel que interpretou com maestria durante 32 anos na sua cidade interiorana. Pontes é um artista, um gênio da comédia e por motives de espaço coloco aqui só o miolo da introdução em que o narrador descreve o ser humano como “o animal que ri” e descreve a arte do protagonista: "Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, e...

Poema meu: Saudades da Aldeia desde New Haven

Todas as cartas de amor são Ridículas. Álvaro Campos O Tietê é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia, mas o Tietê não é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia porque não corre minha aldeia. Poucos sabem para onde vai e donde vem o ribeirão da minha aldeia, 
 que pertence a menos gente 
 mas nem por isso é mais livre ou menos sujo. O ribeirão da minha aldeia 
 foi sepultado num túmulo de pedra para não ferir os olhos nem molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia, mas, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, 
 a memória é o que há para além do riberão da minha aldeia e é a fortuna daqueles que a sabem encontrar. Não penso em mais nada na miséria desse inverno gelado estou agora de novo em pé sobre o ribeirão da minha aldeia.

Uma gota de fenomenologia

Esse texto é uma homenagem aos milhares de livrinhos fininhos que se propõem a explicar em 50 páginas qualquer coisa, do Marxismo ao machismo e de Bakhtin a Bakunin: Uma gota de fenomenologia Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir essa mesma coisa, mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele p...