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Showing posts from May, 2008

Recomendação: consenso só no paredão

Alexandre Nodari tem um blogue da pesada: inteligente, praticante de uma crítica profunda, além do lugar comum. Recentemente comentei um post dele e reproduzo minha resposta aqui: Eu me irrito profundamente quando me vejo quase obrigado a defender esse governo daqueles que se opõe a ele em nome de uma pretensa defesa da ética - defesa que eu tenho certeza que vai se transformar em fumaça no dia em que o PSDB/PFL retomar triunfalmente a Brasília. Minha irritação vem do simples fato de que minhas muitas objeções principais ao governo Lula continuam a ser ignoradas no pretenso "debate político" nacional que vive chafurdado em um udenismo moralista, nos obrigando a falar de honestidade ao invés de falar de ideologia, por exemplo. Uma dessas minhas objeções ignoradas no debate público brasileiro vem desse vergonhoso estelionato eleitoral, que é quase uma regra em um mundo "democrático" que vive uma crise agonizante que todo mundo finge que não vê: governo "gerencial

Ai, São Paulo!

Essa é para os meus companheiros de montanha ou sertão que às vezes babam ovo por São Paulo, sem falar em vários paulistas [paulistanos principalmente] que eu conheço e que, acho que sem saber, vivem babando ovo em si mesmo. Das 4.830 escolas de São Paulo avaliadas pelo Enem no ano passado, a melhor escola da rede ESTADUAL não passa de 913ª posição. Se isso é que é ser do primeiro mundo, Deus nos livre a nós, pobres calangos-fritos do sertão ou da montanha, de tanto “desenvolvimento”… PS. E isso também não faz de São Paulo nem um pouco pior que o resto do Brasil. Eu não vou cair na armadilha de negar quem acha SP o máximo para cair na furada de achar que SP é pior que o resto do Brasil e especialmente culpado pelas nossas mazelas. Somos mais ou menos iguais, para bem e para mal. Em outras palavras: despeje hoje 200 milhões de dólares em BH, misture bem e minha cidade vira um porcaria igualzinha a SP.

Melville no Rio de Janeiro

Melville esteve no Rio de Janeiro em 1843 como marinheiro em uma fragata americana . Publicou em 1850 um livro sobre esse ano em que esteve com a marinha passando pelo Peru e depois ficando um bom tempo no Rio de Janeiro. O livro [White-Jacket] é fácil de achar online. Aqui está só um belo parágrafo em que ele promete não descrever, e descreve, vários lugares do Rio que ainda são familiares a quem conhece a cidade hoje em dia – apesar da ortografia maluca dos nomes, que dão uma idéia de como soa o português aos ouvidos de um estrangeiro. […] We lay in Rio some weeks, lazily taking in stores and otherwise preparing for the passage home. But though Rio is one of the most magnificent bays in the world; though the city itself contains many striking objects; and though much might be said of the Sugar Loaf and Signal Hill heights; and the little islet of Lucia; and the fortified Ihla Dos Cobras, or Isle of the Snakes (though the only anacondas and adders now found in the arsenals there are

Eu, o “excêntrico”?

Volta e meia eu me sinto um ET. Por exemplo, a gente não pega qualquer tipo de sinal de TV em casa, nem antena nem cabo. Não é que a gente nunca assista televisão, mas aqui a gente só assiste DVDs ou alguma coisa rápida de vez em quando na internet. Novela, jogo de futebol ou jornal de TV só na casa dos outros, ou seja quase nunca. Também fico completamente fora da média nacional de leitura. Eu realmente adoro ler e dizem que no Brasil é mais fácil alguém arrombar seu carro e levar um par de meias velhas do que um livro novinho. E agora deu no jornal: pesquisa da UnB com quase 2 mil profissionais brasileiros mostra que 85% das mulheres e 95% dos homens preferem ser liderados por homens no trabalho. E eu que achava que era brincadeira quando as pessoas me perguntavam se não era difícil trabalhar com mulheres… Foram mulheres a minha orientadora de doutorado e os três membros do meu comitê e é mulher a chefe do meu departamento. Eu gostei, não porque elas são mulheres mas porque elas trab

Da série grandes filósofos da república

O ABC da política pelo então ministro Rubens Ricúpero: “Eu não tenho escrúpulos: o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde.”

Pequena Homenagem a Francisco Cervantes

Francisco Cervantes era um mexicano que amava o Brasil com a mesma intensidade com que eu amo o México. Eis aí uma pequena amostra da sua poesia: Mínimo homenaje a Burle-Marx Una mañana al despertarme Me asaltó el cielo más azul Que pude imaginarme… Pensé: ¡Qué azul más Digno de Burle-Marx Y sus jardines! Y el azul, con sus alas, Buscaba en los confines Los jardines de Burle Marx.

Notícia

Notícia: a revista gaúcha Palpitar conta agora com dois poemas e um conto meus. Vale a pena de qualquer maneira conhecer a simpática revista que felizmente ignora solenemente os muros que andam separando em nome de uma especialização tecnicista a acadêmia, a literatura e o jornalismo.

Século XIX ou século XXI

Os algarismos romanos são interessantes: bastam mover um pauzinho de lugar e 19 vira 21... "Os partidos, força é confessar que eles estão longe de existir entre nós. Não passam de casuais agregações desconexas, onde formigam incoerências e incompatibilidades a cada passo; não vão além de ajuntamentos compostos, em virtude de circunstâncias fortuitas, como relações, parentescos, interesses, e mantidas apenas pelo que têm os respectivos indivíduos de encetar vida nova, depois do tempo e dos sacrifícios despendidos, pela força do hábito, ou pelo temor de incorrer na pecha de apostasia." Conde Afonso Celso, 1886

Noel Rosa, o Profeta

Quem dá mais por uma mulata que é diplomada Em matéria de samba e de batucada Com as qualidades de moça formosa Fiteira, vaidosa e muito mentirosa? Cinco mil réis, duzentos mil réis, um conto de réis! Ninguém dá mais de um conto de réis? O Vasco paga o lote na batata E em vez de barata Oferece ao Russinho uma mulata Quem dá mais por um violão que toca em falsete Que só não tem braço, fundo e cavalete Pertenceu a Dom Pedro, morou no palácio Foi posto no prego por José Bonifácio? Vinte mil réis, vinte e um e quinhentos, cinqüenta mil réis! Ninguém dá mais de cinqüenta mil réis? Quem arremata o lote é um judeu Quem garante sou eu Pra vendê-lo pelo dobro no museu. Quem dá mais? [Noel Rosa] Quem dá mais por um samba feito nas regras da arte Sem introdução e sem segunda parte Só tem estribilho, nasceu no Salgueiro E exprime dois terços do Rio de Janeiro Quem dá mais? Quem é que dá mais de um conto de réis? (Quem dá mais? Quem dá mais? Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três!) Quanto é que va

Augusto dos Anjos - Debaixo do Tamarindo

Segue um soneto de Eu (1912) dos meus favoritos. Augusto dos Anjos foi uma das minhas paixões da adolescência [ainda adoro os exageros despudorados dele, como esse chorar "bilhões de vezes"]. O tamarindo, árvore de origem africana que se espalha por todos os trópicos desde muito tempo [tanto que o nome científico cita a Índia, onde o tamarindo é muito popular], é uma árvore forte, frondosa, “cheia de personalidade”, também e com uma participação importante em um conto de Juan Rulfo ["Es que somos muy pobres"]. Ah, escrevo esse post saboreando um suco de ... tamarindo. Debaixo do tamarindo No tempo de meu Pai, sob estes galhos, Como uma vela fúnebre de cera, Chorei bilhões de vezes com a canseira De inexorabilissimos trabalhos! Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos, Guarda, como uma caixa derradeira, O passado da Flora Brasileira E a paleontologia dos Carvalhos! Quando pararem todos os relógios De minha vida e a voz dos necrológios Gritar nos noticiários que eu morr

Perguntas indignadas

Marina Silva renuncia e o acordo da Brasil Telecom e Oi sai com o dinheiro do BNDES. Porque sera que os escandalos que realmente interessam nao sao escandalos pela otica da imprensa brasileira? Uma tapioca ou um dossier ridiculo valem mais que a continuacao do velho estilo tucano de privatizar o patrimonio publico estatizando a fonte de financiamento a custa de BILHOES de reais? Um carro alugado ou uma entrada de teatro sao mais importantes que perder mais uma vez a luta contra politicos/coroneis/grileiros e seus pistoleiros, essas figuras do seculo passado que compram um laptop e fingem estar "desenvolvendo"o Brasil?

Para comemorar o 13 de maio: As cotas e as máscaras

Sinceramente acho que o 13 de maio é para comemorar, mas para lembrar e refletir sobre as relações raciais no Brasil. Então lá vai: As cotas e as máscaras Ainda que alguém possa fazer um ou outro reparo específico a forma como se quer implantar sistemas de cotas no Brasil, acho que as cotas são fundamentais por uma questão de justiça. Acho que esses reparos podem ser feitos ser qualquer comprometimento da idéia em si como forma de ajustes durante o processo de implementação e que portanto não faz sentido ser contra as cotas por causa disso. Muito antes pelo contrário, acho que é hora de clareza de posições: e as cotas servem exatamente para dar clareza a esse que é um dos vários debates que são tradicionalmente escamoteados no Brasil. Esse escamoteamento não é novo e não tem nada de inocente – não se trata daquilo que Machado de Assis uma vez chamou de “inconsciente hipocrisia”. Não é à toa que somos um dos países mais desiguais do mundo. Na época do império todos no Brasil eram a favo

O universal como recalque

As questões de gênero, de etnia e de classe não são diferentes da questão nacional ou mesmo da questão regional no estudo da literatura. Temos aí cinco recortes possíveis [entre muitos outros] para se ler um texto produtivamente e todos os cinco recortes são válidos desde que se reconheça algo que para mim é o óbvio: nenhum deles exaure o texto completamente. A partir desse reconhecimento humilde dos limites humanos de uma crítica qualquer, questões de gênero, etnia, classe, nação e região são recortes legítimos como formas de abordar o texto, e vão funcionar na medida em que o crítico tenha criatividade, bom senso e conhecimento para tirar o melhor proveito de cada um. Manuel Bandeira era homem, era branco, era de uma classe alta em decadência econômica, era basileiro e era pernambucano. E era muitas outras coisas também: era um homem do seu tempo, era um pernambucano morando no Rio de Janeiro, era um homem com um perfil psicológico específico só dele, era um tradutor ativo, era um pr

Curto ensaio sobre a paranóia

Curto ensaio sobre a paranóia O paranóico é o sujeito que se transforma num intérprete compulsivo de tudo - tudo à sua volta, da peruca do vizinho à cor dos ônibus, tem um sentido importante e precisa ser explicado. Salvador Dali tem um texto interessante em que ele classifica a estética daqueles quadros dele em que uma montanha é um rosto, etc de “paranóica”. O combustível da paranóia é um sentimento primário de que ninguém escapa: medo. Mas isso em si não explica muito porque é claro que nem todo medroso é um paranóico. Além do medo o paranóico tem fé no sentido coerentes de todas coisas do mundo, uma convicção de que, por exemplo, se alguém tem câncer ou morre atropelado é por algum motivo “superior”. Mas, de novo, essa fé, como aquele medo, em si, não explica o paranóico. Afinal essa é uma fé que move muita gente que não padece desse mal. Para essas pessoas essa fé implica em tranquilidade ou pelo menos um consolo para a aceitação difícil de cânceres e atropelamentos que continuam

A ambiguidade e o diabo

Através do excelente blogue do Idelber Alvelar , “O biscoito fino e a massa” cheguei a um texto interessante de Alan Pauls sobre 1968, que começa assim: “Grosso modo, os 40 anos de Maio 68 produziram três reações: 1) ‘Maio 68 é responsável por todos os males que vivemos hoje: falta de autoridade, relativismo absoluto, crise dos valores’; 2) ‘Maio 68 é responsável por todas as conquistas das quais o presente pode se gabar: pluralismo, direitos das minorias, laicismo, anti-autoritarismo’; 3) ‘Maio 68 teve coisas geniais e coisas estúpidas’. A pior, a mais medíocre, conformista, ignorante e reacionária é obviamente a terceira.” A terceira opção me parece na melhor das hipóteses fruto do desejo de falar sem dizer coisa alguma. Em geral é algo bem pior que isso; trata-se de anular as diferenças para deixar que o consenso de Washington continue a desfilar os seus tanques, metafóricos e literais, pelo mundo. Mas é preciso pintar a ambiguidade com matizes mais ricos. Essa história de falar se

Nova série: sabedoria popular em ação

Em 1938 Nelson de Senna publicou um livro pitoresco, na verdade um esboço do que ele teria conseguido reunir se vivesse mais um pouco e tivesse tempo de sistematizar em um dicionário tudo o que juntou sobre a cultura negra no Brasil. Das profundezas desse livro cheio de tesouros tirei um ditado que se adequa bem, não só a essa recente experiência do Ronaldinho com as agruras da celebridade, mas com a caretice machista do mundo do futebol: "Que remédio tem quem ama senão pôr o pé na lama?"

Manual de anti-ajuda de Franz K.

"A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de-dentro delas. Assim fiz. Morreram." Clarice Lispector Às vezes é preciso saber que há também a hora do lixo e é preciso ser concreto como uma anta e cego como um prego. Já dizia um escravo na barra do tribunal: “no galinheiro a barata não tem vez”. Explicar a galinha não absolve nem liberta a barata do bico do sapato, nem do açúcar, da farinha e do gesso. A faca corta, a pedra quebra, a fome não depende de ponto de vista, mesmo sendo toda sua não se dissolve nem no seu reconhecimento, nem na sua ignorância, nem mesmo no seu desespero. Mesmo que você queira com força, persistência e engenho poder com a fome, a faca e a pedra o açúcar, a farinha, o gesso, a galinha ou o bico do sapato, quando você acorda, escova os dentes e sorri para o espelho dizendo: “eu posso com a dor e a fome, com a faca que corta minha pele e a pedra que amassa meu dedo com o açúcar