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Showing posts from 2021

O Paradigma da Honestidade é um Império da Lavagem de Dinheiro e da Sonegação de Impostos

 Delaware é o segundo menor estado dos Estados Unidos. Com uma população de 960.000 pessoas, Delaware tem 1.3 milhão de corporações. Praticamente a metade das corporações estadunidenses tem sede registrada lá. 68% das 500 maiores empresas. Como a questão das leis corporativas é estadual, Delaware não cobra imposto de renda das empresas que, apesar de instaladas por lá, não tem negócios no estado. Escândalos mundiais envolvendo bilhões de dólares, da Malasia ao Equador e Rússia contam com a participação de corporações do estado, ajudando picaretas de todos os tipos, da Goldman Sachs até a Odebrecht. As autoridades financeiras do Brasil decidiram que qualquer corporação financeira listada em Delaware está na sua lista negra, tal a má fama do estado. Já a especialidade da Dakota do Norte, com seus 760.000 habitantes, é outra. Lá os juros são liberados e as empresas de cartões de crédito operam de lá, depenando seus clientes que se endividam com taxas escorchantes. Além de abolir o conceit

Diário Visual de Babylon

Esse é o lago Thunderbird, antiga refúgio dos Shawnees alagado no começo dos anos 70. Dois irmãos Shawnees, líderes indígenas memoráveis, um de natureza espiritual e o outro de natureza política e militar. Tenskwatawa teve uma visão mística em 1805: os indígenas deveriam refutar a forma de vida dos brancos e fazer paz entre eles para enfrentar "os filhos do espírito do Mal". Tecumseh, que é nome de avenida aqui em Norman, ao defender uma união de todos os povos indígenas para enfrentar os Estados Unidos, declarou: "todos os homens vermelhos [red men] tem que se unir em reivindicar seu direito comum, igual à terra, como foi no começo e ainda deverá ser de novo; porque a terra nunca foi dividida, pois pertence a todos para o uso de cada um". Essa é entrada do novo museu aqui de  Oklahoma, o museu dos primeiros americanos [First American Museum], um acontecimento cultural e arquitetônico. As imagens de Tenskwatana e Tecumseh são do museu.  Aqui está a admissão pura e s

Literatura minimalista

 Mo Willems é um escritor/ilustrador dos Estados Unidos. Ele criou vários livros para crianças com uma dupla de amigos, Porquinho e Geraldo [um elefante]. Literatura de altíssima qualidade com um vocabulário de 40 palavras para crianças que são introduzidas à leitura. Uma maravilha de contenção e arte no texto e no traço [para um brasileiro] levemente sugestivo ao desenho do Ziraldo. Pouco mais do diálogo entre um elefante de óculos e um porquinho flutuando na página branca, o desenho segue a contenção do vocabulário, tirando o máximo do mínimo de linhas.  Entre os dois amigos tão diferentes uma amizade linda, destrambelhadamente cômica e cheia de ternuras e crises, no espírito anárquico da primeira infância. Medos, inseguranças, egoísmos e paixões da infância à flor da pele em pequenos dramas, para os adultos, desimportantes.  Lendo um artigo numa revista há uns anos atrás, descobri que Mo Willems não fala com os pais há uns 15 anos. Eles ameaçavam o jovem pretendente a artista: se el

Racismos nas Américas

Em 1915 foi projetado o primeiro filme em seção oficial dentro da Casa Branca. Era "O Nascimento de uma Nação", baseado num livro de propaganda do grupo paramilitar Ku Klux Klan, que àquela altura tinha praticamente desaparecido. Entusiasmado o presidente Woodrow Wilson comparou o filme ao ato de "escrever história com luz". A KKK foi reconstruída sob o impacto do filme e no meio da década de 20 estima-se que já tivesse pelo menos 3 milhões de membros. Em 1924 Indiana e Colorado eram dois estados completamente dominados por políticos identificados com o grupo, que agora perseguia não apenas negros, mas judeus, católicos e imigrantes em geral.  Em Belo Horizonte, nos mesmos anos 20, chegou o arcebispo Antônio dos Santos Cabral, que começou a proibir e perseguir o culto a Nossa Senhora do Rosário, empurrando para a periferia da cidade essas igrejas e festas que mobilizam a população negra em Minas Gerais desde os tempos da colônia. Já na construção da cidade nos fins

Músicas que fizeram minha cabeça

 Eu fiquei louco quando comprei o disco de vinil do Billy Bragg, único que foi lançado no Brasil até onde sei. Era como voltar à Inglaterra feia e mal humorada dos anos 80 já com Thatcher botando para quebrar. A música que fez minha cabeça era um hino trabalhista "Power in the Union", mas meu companheiro de aventuras musicais Renato Alcici tinha o ouvido mais apurado e escolheu essa maravilha para a gente tocar junto:  

Obituário: Vicente Fernández

 O rei das rancheras morreu e dominou as rádios mexicanas aqui de Oklahoma hoje. Vicente Fernández fazia Agnaldo Timóteo parecer um cantor de Bossa Nova, era como se a brutalidade de Vicente Celestino se misturasse com a suavidade Roberto Carlos:  Sente o drama: "Acá entre nos Quiero que sepas la verdad: No te he dejado de adorar, Allá en mi triste soledad Me han dado ganas de gritar, Salir corriendo y preguntar Que es lo que ha sido de tu vida. Acá entre nos Siempre te voy a recordar Y hoy que a mi lado ya no estás No tengo mas que confesar Que ya no puedo soportar Que estoy odiando sin odiar Porque respiro por la herida."

Diário Íntimo - O jardim no inverno

 O inverno chegou - na verdade falta ainda um pouco para o inverno oficial, mas para alguém como eu, nascido e criado nos trópicos, o inverno começa sempre antes do inverno. As atividades jardineiras ficam paralisadas e eu fico olhando para o meu pobre pé de maracujá, guarnecido dentro de casa, mas mesmo assim sofrendo com a falta de sol e de calor.   Chegou o momento para outras distrações. Todos os dias de manhã Sopa e Pibi vão lá para fora montar guarda contra seus inimigos mortais: uma gang de esquilos abusados que invariavelmente aplicam nelas o mesmo golpe. Um deles aparece na foto, provocando as duas no tronco da nogueira; enquanto isso dois ou três deles descem por outra árvore, à esquerda da nogueira, e vão enterrar ou desenterrar suas nozes no jardim. Quando uma das duas patetas dá conta do que está acontecendo, saem as duas correndo atrás dos outros esquilos e é o momento do esquilo provocador descer da nogueira para fazer o mesmo. Isso ocupa as duas por pelo menos duas hora

Amor e Arte

Era uma vez um músico tímido, um saxofonista chamado Paul Desmond, que amava em silêncio e à distância a atriz Audrey Hepburn. Em 1954, todas as noites ele pedia ao pianista do grupo, Dave Brubeck, para chamar um intervalo no mesma horário. Discretamente ele saía do clube atravessava a rua para assistir à distância Audrey saindo do teatro onde ela então se apresentava. Naquele ano ele escreveu uma música chamada "Audrey". Desmond morreu solteiro, de câncer, mais de vinte anos depois, em 1977, sem nunca ter encontrado pessoalmente Audrey Hepburn. Quase quarenta anos depois, em 1993, o ex-marido de Audrey Hepburn telefonou para Brubeck para pedir ao seu quarteto para tocar "Audrey" no velório da atriz. Ele disse a Brubeck que a atriz ouvia a faixa todas as noites antes de dormir. O cartunista Paul Rogers leu a história na biografia de Paulo Desmond escrita por Doug Ramsey. De Desmond para Audrey para Andrea Dotti (o marido) para Brubeck para Ramsey para Rogers para mi

A escolástica antropofágica

Um problema frequente no Brasil. As pessoas lêem muito mais os manuais e resumos do que os autores em si. O resultado é que certas bobagens acabam sendo repetidas e repetidas, mesmo em trabalhos universitários. Os alunos não se exercitam lendo e interpretando eles mesmos a literatura e o estudo da literatura se transforma em um estranho tipo de escolástica.  Exemplo curto e grosso: Oswald de Andrade. Leiam estes três trechos e me digam se dá para sustentar essa ideia porra louca de um libertário a frente do seu tempo na compreensão do Brasil como um país culturalmente especial porque pós-colonial e pós-estruturalista desde o final dos anos 20. "Indago daqui se existe uma censura cinematográfica para permitir que nossas crianças menores de dez anos vão se contaminar no swing imbecil e nos trejeitos cretinizantes e imoralíssimos dos atuais desenhos animados.   Urge revigorar a campanha tradicionalista de Gilberto Freyre em contra-ofensiva aos monopólios americanos que agora já masti

O Nobel entre Saramago e Octavio Paz

 José Saramago tinha uma personalidade agressiva, um temperamento afeito ao confronto. Isso aparecia mais claramente nas entrevistas, nas quais Saramago nunca se importava de dizer coisas que pudessem ser consideradas desagradáveis pelo interlocutor. Isso podia dar na expressão de coisas que eram para ele verdades: a crítica à Igreja Católica de Ratzinger e a afirmação da sua crença na revolução comunista. Mas também podia dar em ideias meio esdrúxulas como uma nova união ibérica com a Espanha defendida como benéfica a Portugal em particular. Na sua ficção - que pelo para mim é o que realmente importa - me parece -  não sou especialista na obra dele - Saramago usava esse temperamento agressivo a favor de uma escrita sutil mas bem comunicativa e de posições políticas que não estavam ligadas ao noticiário recente.  Octavio Paz é para mim o oposto de José Saramago: sempre elegante ao ponto de parecer um sofista, sempre se esquivando da sua cumplicidade com o poder, sempre disposto a uma l

Obituário - Nelson Freire

 Morreu também Nelson Freire - não pode haver nada mais diferente no mundo da música. Para mim ele era, em primeiro lugar, o pianista preferido da minha sogra, que é uma pianista muito boa. Ela era entusiasmada com Nelson Freire ao ponto de - já com oitenta anos e mais de dez pontos na perna por causa de um acidente caseiro - ir de trem para Nova Iorque só para assistir mais uma vez Nelson Freire tocar. Nós morávamos na época no estado vizinho e a viagem de trem até Manhattan dura mais ou menos duas horas. Nelson Freire é meu companheiro de estudo, leitura e escrita com os noturnos de Chopin, que ele gravou divinamente. Eu até fiz um CD para a minha sogra em que intercalava as interpretações dele com as de Cláudio Arau, também maravilhosas. Além disso tem o filme maravilhoso do João Moreira Salles, tão delicado e rigoroso quanto o pianista que retratava com veneração.   

Obituário - Marília Mendonça

Morando fora do Brasil há muito tempo, tenho que ser proativo para conhecer as novas ondas musicais que antes me chegavam por osmose, no restaurante, no táxi, na fila do banco etc. Assim, com aquele atraso tradicional, fui escarafunchar Marília Mendonça, Maiara e Maraísa e Simone e Simaria pelo iutúbio adentro. Escutei tudo o que havia, até entrevistas diversas. Não faz muito tempo falava com os meus amigos de grupo de leitura da segunda-feira sobre como admirava especialmente Marília Mendonça, recebi apoio entusiasmado de um ou dois e indiferença polida dos outros que, ou não conheciam, ou não gostavam do estilo - com todo o direito, aliás. Compartilhei na época um punhado de músicas que achava legais. Essa é uma das minhas favoritas: Não gostava para nada da geração que se seguiu ao primeiro estouro do sertanejo. Achava Leandro e Leonardo e Zezé di Camargo, por exemplo, umas porcarias que misturavam o pior do Roberto Carlos com um pastiche ridículo de Country. Depois daquela música d

Era uma vez

 Era uma vez um maestro chamado Stokowski, que quis aproveitar a onda da "Boa Vizinhança" e armou um navio com um estúdio de gravação de última geração para sair pela América gravando música de outras culturas. Em 1942 ele abordou no Rio de Janeiro e, tendo como guia um certo maestro brasileiro chamado Villa-Lobos, gravou uma série de canções brasileiras. Entre elas estão macumbas, sambas e música caipira. Um certo sujeito de 34 anos conhecido pelo apelido de Cartola:

A história bate à porta de casa: os Shawnees de Norman

 Nas andanças e mazelas que marcaram a experiência dos povos indígenas na América do Norte, os índios Shawnee se dividiram em várias grupos aparentados por língua e cultura mas completamente separados uns dos outros. A colonização os encontrou vivendo espalhados no que hoje são os estados de Ohio, Illinois, Indiana, Tennessee e Kentucky. Uma delas veio parar em Oklahoma antes do território se transformar em estado fugindo do Texas, onde a independência do México e anexação aos EUA significaram terra livre para supremacistas brancos tocar o terror. Eles se dividiram outra vez e uma parte se assentou perto de uma cidade aqui perto chamada Shawnee, enquanto outra se embrenhou aqui nas cercanias da cidade onde moro, Norman. Contam que Big Jim, o chefe desse grupo, buscou o terreno difícil e a terra não muito fértil a oeste da cidade como forma de se afastar e se proteger do Office of Indian Affairs, o órgão governamental a cargo de "civilizar" os índios dos Estados Unidos a parti

Drummond em inglês

Um boi vê os homens Tão delicados (mais que um arbusto) e correm e correm de um para outro lado, sempre esquecidos de alguma coisa. Certamente, falta-lhes não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves, até sinistros. Coitados, dir-se-ia não escutam nem o canto do ar nem os segredos do feno, como também parecem não enxergar o que é visível e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes e no rasto da tristeza chegam à crueldade. Toda a expressão deles mora nos olhos — e perde-se a um simples baixar de cílios, a uma sombra. Nada nos pelos, nos extremos de inconcebível fragilidade, e como neles há pouca montanha, e que secura e que reentrâncias e que impossibilidade de se organizarem em formas calmas, permanentes e necessárias. Têm, talvez, certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem perdoar a agitação incômoda e o translúcido vazio interior que os torna tão pobres e carecidos de emitir sons absurdos e agônicos:

Notícias das profundezas do tuíto

 1. Para quem vive o Fla-Flu diário lá no tuíto: o buraco, meus amigos, é muitíssimo mais embaixo. Para quem não conhece: sem uma boa dose de objetividade e cuidado por parte do usuário uma excelente forma de se informar pode acabar reduzida a um bate-boca interminável e inútil. 2. Desejar e celebrar porradas da polícia, chuvas de gás de pimenta, prisões arbitrárias, estupros na cela da prisão, espancamentos e tiros "na cabecinha" dos adversários vai além de defender o uso da violência como arma política. É descer lá nas profundezas de onde veio o atual presidente da república no Brasil. É ser, no século XXI, uma expressão típica do sadismo que a sociedade escravista nos legou e que a ditadura nos relegou. Não importa o alvo. Ou melhor, o alvo importa porque ajuda a entender melhor as obsessões do autoritarismo brasileiro.  3. As rivalidades no futebol servem exatamente para isso: exacerbar seus desejos obscuros de violência num ambiente de ritual simbólico intenso. Claro que

Entre a foto e o retrato pintado

 O contraste entre a foto do velho Machado de Assis em 1905 e o retrato feito com base nela pelo pintor Henrique Bernardelli é incontestável. O homem da foto e o retrato pintado têm cores diferentes; um é negro e o outro, nem sequer mulato. Bernardelli, assim como Nabuco no seu famoso comentário sobre o homem da Grécia que Machado de Assis seria e no quão desmerecedor seria chamar atenção para a sua condição racial, considerava esse embranquecimento talvez como uma homenagem a um homem que, admirado e até venerado àquela altura, deveria estar supostamente acima da sua origem racial. O racismo brasileiro tem muitas faces e essa é apenas uma delas. Talvez seja a mais insidiosa, porque é revestida de supostas boas intenções. Deveríamos estar discutindo-o seriamente porque é fácil repudiar a face grotesca do racismo, mas essa sua face pretensamente benévola e gentil é igualmente destrutora.  O Brasil que reconhecemos culturalmente hoje simplesmente não existiria sem Gonçalves Dias, Machado

Telegráficas sobre Arturo Toscanini

 

Antonio Vieira, contador de histórias e inspirador de Eça

 Num sermão de Vieira sobre os encantos e encantamentos do rosário, o pregador maravilhoso faz uma pequena pausa e o contador de histórias toma conta: “No reino de Valença houve um fidalgo rico e moço, com que já está dito quais seriam os seus pensamentos. Deu em festejar com passeios públicos uma senhora casa­da, de igual ou maior qualidade, mas tão honesta como ilustre. Chegou a notícia ao marido, e não só para dissimular o seu agravo, mas para o vingar, com pretexto de passar os calores do estio no campo, se passou com toda a família a uma quinta. Anda­dos alguns dias, entrou em um aposento, onde estava só a mulher, deu volta à chave, e, tirando de um punhal, lhe mandou que escrevesse o que lhe ditasse. Respondeu a senho­ra, muito segura, que nem para a sua obediência eram necessários punhais, nem para a sua inocência havia temores. Escreveu, e o que continha o papel ditado, era estranhar ela ao fidalgo dos passeios o descuido de a não ver naquele retiro, avisando-o que, se

Quatro vezes 7 de setembro

  Em 1841 o pintor René Moreaux imaginou assim a proclamação da independência do Brasil no dia 7 de setembro de 1822. A ideia de uma monarquia constitucional não era de todo estranha . Lafayette defendia o sistema na época da revolução francesa e os próprios franceses experimentariam com ela em 1830 com o "rei cidadão " Louis Philippe e o regime durou até a revolução de 1848. Já no finalzinho da monarquia o pintor brasileiro Pedro Américo pintou o famoso Grito do Ipiranga , bem mais movimentado e com direito a uma audiência algo ambivalente do outro lado da cerca : um lavrador com seu carro de boi levando madeira recém-cortada , um fazendeiro no lombo do cavalo que parece estar olhando não exatamente para o imperador e sua trupe e de um segundo lavrador com uma mula carregada . Um ano depois a monarquia estaria aniquilada no dia 15 de outubro . Praticamente a redação inteira do jor