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Showing posts with the label obituario

Obituário: Vicente Fernández

 O rei das rancheras morreu e dominou as rádios mexicanas aqui de Oklahoma hoje. Vicente Fernández fazia Agnaldo Timóteo parecer um cantor de Bossa Nova, era como se a brutalidade de Vicente Celestino se misturasse com a suavidade Roberto Carlos:  Sente o drama: "Acá entre nos Quiero que sepas la verdad: No te he dejado de adorar, Allá en mi triste soledad Me han dado ganas de gritar, Salir corriendo y preguntar Que es lo que ha sido de tu vida. Acá entre nos Siempre te voy a recordar Y hoy que a mi lado ya no estás No tengo mas que confesar Que ya no puedo soportar Que estoy odiando sin odiar Porque respiro por la herida."

Obituário - Nelson Freire

 Morreu também Nelson Freire - não pode haver nada mais diferente no mundo da música. Para mim ele era, em primeiro lugar, o pianista preferido da minha sogra, que é uma pianista muito boa. Ela era entusiasmada com Nelson Freire ao ponto de - já com oitenta anos e mais de dez pontos na perna por causa de um acidente caseiro - ir de trem para Nova Iorque só para assistir mais uma vez Nelson Freire tocar. Nós morávamos na época no estado vizinho e a viagem de trem até Manhattan dura mais ou menos duas horas. Nelson Freire é meu companheiro de estudo, leitura e escrita com os noturnos de Chopin, que ele gravou divinamente. Eu até fiz um CD para a minha sogra em que intercalava as interpretações dele com as de Cláudio Arau, também maravilhosas. Além disso tem o filme maravilhoso do João Moreira Salles, tão delicado e rigoroso quanto o pianista que retratava com veneração.   

Obituário - Marília Mendonça

Morando fora do Brasil há muito tempo, tenho que ser proativo para conhecer as novas ondas musicais que antes me chegavam por osmose, no restaurante, no táxi, na fila do banco etc. Assim, com aquele atraso tradicional, fui escarafunchar Marília Mendonça, Maiara e Maraísa e Simone e Simaria pelo iutúbio adentro. Escutei tudo o que havia, até entrevistas diversas. Não faz muito tempo falava com os meus amigos de grupo de leitura da segunda-feira sobre como admirava especialmente Marília Mendonça, recebi apoio entusiasmado de um ou dois e indiferença polida dos outros que, ou não conheciam, ou não gostavam do estilo - com todo o direito, aliás. Compartilhei na época um punhado de músicas que achava legais. Essa é uma das minhas favoritas: Não gostava para nada da geração que se seguiu ao primeiro estouro do sertanejo. Achava Leandro e Leonardo e Zezé di Camargo, por exemplo, umas porcarias que misturavam o pior do Roberto Carlos com um pastiche ridículo de Country. Depois daquela música d...

Obituário: José María Galante

O corona matou José María Galante, um símbolo da resistência ao franquismo e da tentativa (fracassada) de levar aos tribunais os carrascos e torturadores daquele regime fascista que sufocou a Espanho até os anos 70. Galante nunca aceitou a anistia de 1977 na Espanha, semelhante em certos aspectos a que o governo militar baixou na mesma época no Brasil. Seu torturador, Antonio González Pacheco morreu em maio também, ironicamente também por causa do Corona, mas morreu ainda com suas condecorações e sua gorda pensão de aposentadoria. José María Galante perdeu outras batalhas: não queria a Espanha na OTAN nem bases americanas no seu país.

Obituário: Sérgio Sant'anna

"O sujeito que o recrutara por um salário mínimo lhe dissera que ele ainda tinha sorte, pois o desemprego grassava no país. Era um sujeito que gostava de usar verbos desse tipo, de dicionário, que lhe pareciam conceder dignidade e pompa às suas palavras, embora ele não chegasse a materializar em sua mente tais substantivos abstratos. Autoridade e importância, sim, eram prerrogativas das quais ele se revestia em seu cargo, ele ali sentado com a gravata e a palavra, enquanto que os homens que desfilavam à sua frente permaneciam de pé e mudos, a não ser por certas respostas quase monossilábicas como "sim senhor", ou "não senhor" quando se tratava de vícios como a cachaça. Se audiência fosse um pouco mais qualificada, ele discorreria também um pouco mais sobre os problemas do país, que provinham do atraso do povo, a desonestidade e incompetência dos políticos, agravadas pelo gigantismo do estado. Na intimidade do lar, ele apontava ainda causas como as condições ...

Obituário: Little Richard

Nos meio dos anos 50 ele era claramente, obviamente gay na sua performance. O topete Madame Pompadour, a maquiagem, as roupas, os gritos agudos. E era um negro da Georgia, criado num humilde cortiço, trabalhando como lavador de pratos, nos anos 50. E tocava uma música "selvagem": gritada, repetitiva, sensual, obsessiva, rápida. Primeiro, em 1956, vieram "Tutti Frutti" e depois "Long Tall Sally"; depois veio "Lucille" em 1957 e "Good Molly Miss Molly" em 1958.   Naquele domínio total do puritanismo classe média, Little Richard rebolava, revirava os olhinhos, fazia caras e bocas, tocava piano com violência - Jerry Lee Lewis era muito superior no mesmo estilo de música. As letras às vezes eram poemas non-sense e não tinham importância pelo "conteúdo": no breque de Tutti Frutti, o que era: "a wop bob alu bob a wop bam boom"? Era o veículo para uma voz que era pura alegria sexual despudorada e livre. Claro que, numa s...

Obituário: Aldir Blanc

Em tempos de coronga, a ocupação principal aqui neste meu canto é escrever obituários. Uma letra de Aldir Blanc que eu adoro é essa aqui: Incompatibilidade de gênios Doutor, jogava o Flamengo, eu queria escutar; chegou, mudou de estação, começou a cantar. Tem mais: um cisco no olho, ela em vez de assoprar Sem dó, falou que por ela eu podia cegar. Se eu dou um pulo, um pulinho, um instantinho no bar, bastou: durante dez noites me faz jejuar. Levou as minhas cuecas pro bruxo rezar. Coou meu café na calça pra me segurar. Se eu estou devendo dinheiro e vem um me cobrar Doutor, a peste abre a porta e ainda manda sentar. Depois, se eu mudo de emprego que é pra melhorar, vê só, convida a mãe dela pra ir morar lá. Doutor, se eu peço feijão ela deixa salgar. Calor, mas veste casaco pra me atazanar. E ontem sonhando comigo mandou eu jogar. No burro e deu na cabeça a centena e o milhar. Ai, quero me separar ...

Obituário 2 para Toni Morrison - Prefácio do "The Black Book"

Obituário duplo: Luiz Alfredo Garcia-Roza e Rubem Fonseca

"Eu era muito amigo do Zé Rubem [ Fonseca ], a gente ia na casa um do outro, ele dizia pra mim. Ó, meu livro sai na terça-feira, e na terça-feira lá estava eu na livraria pra pegar o livro. Garcia-Roza sorri. Sugiro um volume de Dennis Lehane e ele deixa separado numa pilha. – Quando resolvi escrever, fugi do Rubem. Não houve animosidade nenhuma, continuamos nos falando, mas nunca sobre literatura. Eu sabia que ele ia querer me dar conselho, e eu não podia escrever literatura policial pedindo dica pro Rubem Fonseca. – Mas ele leu seus livros? – Sei lá. Nunca falamos sobre isso. Virou uma espécie de muro invisível, falamos de tudo, menos dos nossos livros. Mas, repito, sem nenhuma animosidade. Somos ótimos amigos. Ele é um doce de pessoa." Trecho de matéria da revista Piauí que você encontra aqui .

Obituário: Rubem Fonseca 2

Foto minha: Árvore grampeada " Em várias ocasiões ele ouvira dizer que pela mente do indivíduo que está morrendo afogado desfilam em vertiginosa rapidez os principais acontecimentos da sua vida e sempre achara absurda essa afirmativa, até que um dia ocorreu que ele estava morrendo, e enquanto morria se lembrou de coisas esquecidas, da notícia de jornal segundo a qual na sua infância pobre ele usava um sapato furado, sem meias, e pintava o dedão do pé para disfarçar o furo, mas ele sempre usara meias e sapatos sem furos, meias que sua mãe cerzia cuidadosamente, cerzindo todos os anos de sua infância..." Começo meteórico de "Orgulho", outro conto de Rubem Fonseca

Obituário: Rubem Fonseca

Foto minha: Dente de Leão "Um dia saí para o meu passeio habitual quando ele, o pedinte, surgiu inesperadamente. Inferno, como foi que ele descobriu o meu endereço? "Doutor, não me abandone!" Sua voz era de mágoa e ressentimento. "Só tenho o senhor no mundo, não faça isso de novo comigo, estou precisando de um dinheiro, esta é a última vez, eu juro!" — e ele encostou o seu corpo bem junto ao meu, enquanto caminhávamos, e eu podia sentir o seu hálito azedo e podre de faminto. Ele era mais alto do que eu, forte e ameaçador. Fui na direção da minha casa, ele me acompanhando, o rosto fixo virado para o meu, me vigiando curioso, desconfiado, implacável, até que chegamos na minha casa. Eu disse, "espere aqui". Fechei a porta, fui ao meu quarto. Voltei, abri a porta e ele ao me ver disse "não faça isso, doutor, só tenho o senhor no mundo". Não acabou de falar ou se falou eu não ouvi, com o barulho do tiro. Ele caiu no chão, então vi qu...

Obituário: Moraes Moreira

O violão de Moraes Moreira é uma síntese fantástica, inventiva. Uma medida clara da força desses bando de garotos de chinelo e camiseta tocando num sítio perdido numa época triste e amarga do Brasil é o silêncio de certos outros baianos sobre eles. O violão de Moraes Moreira, a guitarra de Pepeu Gomes, o baixo de Dadi, mas principalmente o violão de Moraes Moreira era uma coisa muito forte e especial. Não era brinquedo, não. Era puro brinquedo. Era hippie, era doidão, mas era musicalmente muito foda. E no começo de tudo estava o violão de Moraes Moreira.

Obituário: Edward Kamau Brathwaite

Um poeta nascido em Barbados e profundamente influenciado pela sua experiência durante a independência de Ghana, Edward Kamau Brathwaite era capaz de poemas que eram quase uma letra de reggae: Rise rise locks- man, rise rise rise leh we laugh dem, mock dem, stop dem, kill dem, an go’ back back to the black man lan’ back back to Af- rica. Mas Brathwaite também era capaz de outros riscos, experimentando com recordes de jornal e arranjos tipográficos de estilo concretista. Na obra dele se esconde o mundo da diáspora caribenha, inclusive o inglês que o africano mastigou, única experiência parecida com o português brasileiro, mastigado por bocas negras e indígenas até chegar a forma que ele hoje tem nas ruas das cidades brasileiras.  Mais sobre ele aqui .

Obituário - George Steiner

Trechos de discurso feito em Lisboa em 2009: " O jardim de Goethe: atravessa-se o jardim em Weimar e encontramo-nos no terreno do campo de concentração de Buchenwald." " A necessidade humana é frequentemente estúpida, desordenada, desprovida de beleza." " Hoje construir um edifício significa que se aflora a física (a física dos materiais), a sociologia (um edifício é um complexo acto social), a economia (como financiá-lo? Como irá ele sustentar-se?), aborda questões sanitárias, é claro, envolve estudos ambientais; compreender o que significa construir, tentar parar aquilo que estamos a fazer às nossas cidades, tentar obter conhecimento, a encantadora expressão inglesa é  to read a building, lire un bâtiment , da mesma forma que se lê um livro ou um poema, entender o seu significado. Não há campo algum que a arquitectura não abranja, que não alcance, e temos de fazer alguma coisa para parar a barbárie, o clamor do dinheiro, o fascismo do dinheiro, que está ...

Obituário: Roger Avanzi, ou o que podemos reconhecer e aprender com o cruel mundo dos palhaços

O mundo dos palhaços não é um nunca mundo gentil e pacífico. Na base das relações entre os diversos palhaços [cada um executando a sua função específica no picadeiro] frequentemente aparece a questão do subjugamento violento de um ser humano por outro e também da instabilidade precária nessa relação de dominação, já que o dominado pode de repente levantar-se e transformar-se no dominador. Tudo no mundo dos palhaços é mediado pela lógica da caricatura, do exagero, mas uma vez que se compreenda que se trata de uma convenção grotesca, a crueldade constante do mundo do picadeiro fica clara.  No seu manual mínimo do ator, Dario Fo explica que todos os palhaços "lidam com o mesmo problema, com a fome: fome de comida, fome de sexo, mas também fome de dignidade, de identidade, fome de poder" [ I clown, come i giullari e i «comici», trattano sempre dello stesso problema, della fame: fame di cibo, fame di sesso, ma anche fame di dignità, di identità, fame di potere ...