O mundo dos palhaços não é um nunca mundo gentil e pacífico. Na
base das relações entre os diversos palhaços [cada um executando a sua função
específica no picadeiro] frequentemente aparece a questão do subjugamento
violento de um ser humano por outro e também da instabilidade precária nessa
relação de dominação, já que o dominado pode de repente levantar-se e
transformar-se no dominador. Tudo no mundo dos palhaços é mediado pela lógica
da caricatura, do exagero, mas uma vez que se compreenda que se trata de uma
convenção grotesca, a crueldade constante do mundo do picadeiro fica
clara. No
seu manual mínimo do ator, Dario Fo explica que todos os palhaços "lidam
com o mesmo problema, com a fome: fome de comida, fome de sexo, mas também fome
de dignidade, de identidade, fome de poder" [I clown, come i giullari e
i «comici», trattano sempre dello stesso problema, della fame: fame di cibo,
fame di sesso, ma anche fame di dignità, di identità, fame di potere"].
É o mundo da fome é, também, um mundo de desespero.
O mundo dos picadeiros e dos palcos populares formou a comédia
dramática que migrou para o cinema, por exemplo, com Buster Keaton saindo do
trabalho no vaudeville como Toni de Soirée com os pais desde que era criancinha
para as telas do cinema, sempre apanhando e fugindo ou perseguindo e batendo
alguém. O cinema americano seria dominado por uma série de grandes comediantes
judeus [Charles Chaplin, o Gordo e o Magro, os Três Patetas e até os irmãos
Marx até Jerry Lewis e o primeiro Woody Allen, beberam dessa fonte.
Principalmente na América Latina, até bem pouco tempo, o mundo da comédia [e do
drama] ainda descendia quase todo do universo circense dos palhaços com Oscarito,
Grande Otelo, Mazzaropi até Os Trapalhões.
Veja um exemplo contemporâneo do que estou dizendo. O cômico argentino Francella gravou uma série de esquetes curtos para o seu programa de televisão chamados de "Um dia de fúria". Francella faz aqui o papel do pequeno burguês risinho e bonzinho com seus sonhos infantis de consumo: comer um sanduíche no draivetrú do Maquedonaldes antes de ir ao cinema com a esposa, comprando uma televisão nova para assistir o jogo de futebol da seleção com os amigos, usando pela primeira vez uma máquina fotográfica para documentar uma festa de família. O personagem quer fazer tudo certinho para replicar na vida real a alegria eficiente dos comerciais de televisão e dos enlatados dos Estados Unidos, mas então os problemas da vida dura começam a aparecer: a moça do draivetru não entende e erra o pedido, a televisão nova não funciona bem na hora do jogo, o pequeno-burguês aparvalhado não consegue fazer funcionar o disparador automático da máquina que lhe permitiria fotografia a família inteira na hora de soprar a velhinha. O desespero vai crescendo exponencialmente e aquela calma e alegria pequeno-burguesa começa a ruir em pedaços.
Veja um exemplo contemporâneo do que estou dizendo. O cômico argentino Francella gravou uma série de esquetes curtos para o seu programa de televisão chamados de "Um dia de fúria". Francella faz aqui o papel do pequeno burguês risinho e bonzinho com seus sonhos infantis de consumo: comer um sanduíche no draivetrú do Maquedonaldes antes de ir ao cinema com a esposa, comprando uma televisão nova para assistir o jogo de futebol da seleção com os amigos, usando pela primeira vez uma máquina fotográfica para documentar uma festa de família. O personagem quer fazer tudo certinho para replicar na vida real a alegria eficiente dos comerciais de televisão e dos enlatados dos Estados Unidos, mas então os problemas da vida dura começam a aparecer: a moça do draivetru não entende e erra o pedido, a televisão nova não funciona bem na hora do jogo, o pequeno-burguês aparvalhado não consegue fazer funcionar o disparador automático da máquina que lhe permitiria fotografia a família inteira na hora de soprar a velhinha. O desespero vai crescendo exponencialmente e aquela calma e alegria pequeno-burguesa começa a ruir em pedaços.
Nós
somos instados a rir da infatilidade dos seus sonhos de consumo [que são
nossos], a gargalhar com o desespero do pequeno-burguês [que é nosso desespero
também] e a esperar com antecipação pela explosão final em que o
pequeno-burguês explode em revolta com o seu taco de beisebol e quebra tudo à
sua frente. Essa raiva e frustração do personagem do Francella ficou para mim
palpável nas ruas e nas residência da classe média brasileira dos panelaços e
nos linchamentos promovidos por todos democraticamente nas ruas do Brasil.
O palhaço ri de nós, como explica Roger Avanzi no caso do palhaço silencioso e não-risonho, o Toni de Soirée:
"sua arte consiste em representar o erro, em cair. […] Mas enquanto o público está rindo do palhaço, o palhaço ri do povo que pensa que ele caiu. Não caiu, simulou a queda, tem técnica, não se machucou".
O palhaço ri de nós, como explica Roger Avanzi no caso do palhaço silencioso e não-risonho, o Toni de Soirée:
"sua arte consiste em representar o erro, em cair. […] Mas enquanto o público está rindo do palhaço, o palhaço ri do povo que pensa que ele caiu. Não caiu, simulou a queda, tem técnica, não se machucou".
Nascido em 7 de novembro de 1922, em São José do Rio Preto,
Roger Avanzi morreu hoje. Ele era filho de Nerino e Armandine. Seu pai foi fundador do circo
Nerino, e foi lá onde desenvolveu habilidades como acrobata, equilibrista e
claro, palhaço como Picolino II, já que seu pai interpretava o mesmo palhaço. Reeditei esse velho post em sua homenagem. Mais sobre Avanzi aqui.
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