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Lombroso e nós

Cesare Lombroso era um cientista altamente respeitado na segunda metade do século XIX, principalmente por causa do seu L'uomo delinquente. Deveres profissionais me levaram a ler trechos do livro que inspirou tanta gente importante no mundo inteiro e no Brasil. Em comum com muitos outros escritos daquela época, uma fé ostensiva e fervorosa em esquemas bem rígidos de evolução civilizatória. Para mim nem vale a pena bater nessa tecla tão gasta do darwinismo Social de Gobineau e companhia, ainda que ele esteja ainda circulando moribundo na boca de cavalgaduras como o futuro vice-presidente do Brasil.

Acho fascinante e espantoso mesmo o capítulo em que Lombroso sai delirando com a descrição meio desconjuntada de vários "atos criminosos" perpetrados por plantas e animais. O tópico não está solto no livro - se enquadra na ideia de Lombroso do delinquente como um sujeito que não escolheu o delito que comete, mas que foi levado ao crime por instintos primitivos mais fortes que ele. O homem via assassinatos em plantas carnívoras, furtos entre chimpanzés, crimes organizado entre cavalos selvagens, alcoolismo animal,  etc. O texto científico naquele capítulo fica tão desvairado que fica quase poético, como que antecipando a poesia de disparates do surrealismo ou do teatro do absurdo.

I vecchi giuristi parlano di una giustizia divina ed eterna, quasi inerente alla natura; se invece diamo uno sguardo si fenomeni naturali vediamo che gli atti reputati da noi criminosi sono anch'essi completamente naturali, tanto son diffusi e frequenti tra gli animali 
[... e vem uma lista interminável e inacreditável de crimes cometidos por animais] 
... il furto con destrezza e per associazone nelle scimmie, il domestico nel gatti, il ratto di minori nelle formiche rosse, la sostituzione d'infante nel cuculo [...]

Já disse aqui em outra oportunidade que não me interessa ler textos antigos para ser condescendente com o que os antigos pelo que eles supostamente não sabiam e nós supostamente sabemos muito bem. Estou mais interessado no que o passado pode nos ensinar sobre os pontos cegos do nosso próprio tempo. Um tipo parecido de desvario cientificista daquele do livro de Lombroso enche as páginas de jornais e revistas hoje em dia. A fé pode não estar sendo depositada hoje em formatos de crânio ou em fisionomia, mas é tão fervorosa quanto. E essa nova fé avassaladora de que o ser humano pode ser reduzido a medidas e quantidades "objetivas" e gerenciado feito uma manada de ovelhas temperamentais também está montada numa expansão rápida e brutal do capitalismo no mundo. Lá no século XIX Lombroso coletava anedotas de aborígenes australianos e outros povos sendo massacrados pelo trator imperialista que se via como redentor daqueles povos atrasados e precisando de tutela enquanto roubava riquezas e vendia patins de gelo e dinamite a crédito. Agora coletamos dados aos borbotões computados dentro de projetos de grandes conglomerados que derivam seu poder da promessa de transformar todas as nossas doenças, todos os nossos problemas, todos os aspectos da nossa vida em minas de ouro.



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