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Showing posts from November, 2015

Notas para um livro impossível sobre crítica

John Updike, que teve uma longa carreira como escritor de resenhas para jornais e revistas, dizia que não fazia o menor sentido reclamar que um autor "não havia atingido o que nunca quis atingir" com uma determinada obra. Trocando em miúdos: é tolice esperar que Spielberg faça um filme de Godard ou que Godard faça um filme de Spielberg. Mas nem sempre é tão fácil assim discernir a partir da obra o que é que o seu autor queria que ela fizesse. Sem falar que muitas obras interessantes acabam fazendo coisas que seus autores nunca quiseram que elas fizessem; uma vez soltas pelo mundo, as obras sofrem metamorfoses impressionantes na cabeça dos seus vários leitores diferentes. Se há um "eu-autor" numa resenha crítica, ele pertence ao crítico antes de tudo. Mas para isso há que encontrar um público, inclusive um público crítico. Oscar Wilde, com aquela ironia habitual, disse o seguinte: "Minha peça foi um sucesso absoluto. O público é que foi um fracasso".

Ser pai de uma menina de 6 anos em 2015

Ter uma filha de 6 anos como a minha [cada uma deve ser de um jeito, com certeza] é mais ou menos o seguinte [pelo menos se você quiser aprender e se divertir com ela de verdade]: um sujeito casca grossa feito eu, que cresci com três irmãos mais velhos todos muito ogros, tem que começar a aprender sobre pincéis de maquiagem e fazer sessões de salão de beleza enquanto ela toma banho de banheira para passar 3 xampús diferentes e pentear o cabelo dela, além de aprender a ver desenhos animados "harcore" como Strawberry Short Cake e Monster High e tudo mais quanto interesse a ela. E ela vai pulando de lá pra cá, e eu vou seguindo os novos interesses e obsessões, aceitando tudo com a melhor cara do mundo. Foi assim com meu filho, que hoje é um adolescente e já não quer mais muito saber dos pais. No caso dele eram Pokemóns intermináveis e Changemen e companhia limitada. No caso dela isso inclui um bilhão de gritantes e rebolantes cantoras POP que hoje movimentam o rádio sonhando e

A vida continua: Kara Walker e Titus Kaphar

Talvez o mais importante a fazer antes de tentar escrever algo sobre o trabalho de outra pessoa seja entender como esse trabalho me afeta, entender porque ele me afeta, descobrir meu interesse ao invés de fingir que existe um desinteresse científico da minha parte. Titus Kaphar e Kara Walker são artistas contemporâneos que me interessam muito - já mencionei eles aqui brevemente. O trabalho deles me interessa porque os trabalhos dos dois têm um forte componente narrativo, porque eles trazem visibilidade e inteligência para assuntos que são ignorados tradicionalmente, porque eles falam com inteligência crítica de coisas que eu considero importantes e urgentes. Gostaria de escrever sobre eles e sobre Claudia Rankine e Robin Coste Lewis e talvez aproveite esse meu período de reavaliação das prioridades na minha vida para fazer isso. Ou talvez nada disso passe desse rascunho apressado, escrito nos Estados Unidos em português [essa língua tão "exótica"] sobre artistas estadounidens

Burrice e fascismo ou esperteza e fundamentalismo?

Li há pouco tempo um artigo de Eliane Brum sobre a suposta “burrice” nacional , em parte uma resenha bastante positiva do livro de Márcia Tilburi Como conversar com um fascista – reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro . Achei interessante e gostaria mesmo de ler o livro quando puder, mas tenho objeções com o uso de termos como burrice e fascismo. Tenho muita simpatia por tudo o que ela disse, mas acho que chamar o que está acontecendo no Brasil de resultado de "burrice" ou até mesmo de "fascismo" pode ser tentador mas, em última instância, é dar um rótulo meio fácil e antigo a um fenômeno bem mais complexo. Burrice é um termo que subtrai do burro a responsabilidade pelo que diz ou faz, já que o que fala e age é a falta de conhecimento ou de capacidade cognitiva do pobre coitado. Há muita esperteza nessa tal burrice que trata de garantir um debate-boca sempre curto e grosso em torno das mesmas cortinas de fumaça [kit-gay, foro de s

Sobre terror, sobre culpa, sobre solidariedade.

Quando alguém emposta a voz e diz que a França ou o Líbano ou qualquer nação foi atacada/ferida/ofendida por um ato de terrorismo, além de um tom épico-fajuto, essa pessoa entra em uma estranha sintonia com o discurso desse tipo de terrorrismo, que sustenta que todo e qualquer cidadão de uma determinada nação é parte responsável pelos atos daquela nação como um todo. Trocando em miúdos, um vendedor de cachorro quente na Praça do Papa é responsável por tudo o que o governo brasileiro faz ou deixa de fazer, por exemplo, com os povos indígenas que habitam o país. Assim sendo, seguindo esse raciocínio, um grupo terrorista que lutasse contra o genocídio dos indígenas no Brasil consideraria explodir esse vendedor de cachorro quente na Praça do Papa e os dois pipoqueiros ao lado como um alvo legítimo para um protesto de natureza violenta. Um certo Picasso pintou no mesmo 1937 um quadro/protesto que só voltou à Espanha depois que Franco caiu fora Isso não foi inventado pela escalada do t

Trechos do Diário de Witold Gombrowicz

Estou muito, muito lentamente lendo o diário do escritor polonês Witold Gombrowicz, traduzido para o inglês Lillian Vallee e publicado em 2012. Não gosto de traduzir coisas que foram traduzidas para o inglês mas não sei dizer "oi" em polonês mas a importância dos diários de Gombrowicz para mim foi comprovada quando cruzei recentemente com referências a Gombrowicz no livro FUNDAMENTAL de Eduardo Subirats Mito y Literatura , baseado numa leitura instigante de cinco autores centrais para mim: Mário de Andrade, Guimarães Rosa, Juan Rulfo, José María Arguedas e Augusto Roa Bastos. Leio os dois tão lentamente que é capaz de eu nunca chegar ao final dos dois livros, mas chegar ao final das coisas acho que nunca foi meu forte de qualquer jeito... 1953 Quarta-Feira [pg. 67] O artista que se realiza dentro da arte nunca será criativo. Ele deve permanecer nas periferias onde a arte encontra a vida, onde perguntas desagradáveis como as seguintes aparecem: quanto da poesia que escre

Simone de Beauvoir e as definições essencialistas do feminino

A falha principal da humanidade não é a ignorância, mas a recusa do saber. Tenho dado para ler a vários alunos meus o capítulo introdutório de O segundo sexo de Simone de Beauvoir. Gostei muito que tivessem citado um pedacinho dele no exame do ENEM. Acho paradoxal que algumas pessoas se queixem de reações, digamos, toscas sobre o assunto ao mesmo tempo em que dão máxima visibilidade a essas declarações, em alguns casos óbvias e em outras vindas de ilustres desconhecidos que são alçados a um destaque imenso por sua imbecilidade.  Acho fundamental ler o texto, voltar ao texto, sempre. Mesmo porque o assunto está longe de ultrapassado, ainda que o livro seja de 1949. Uma grande amiga esteve semana passada numa palestra na universidade sobre « Negociação Para Mulheres », palestra criada provavelmente pela constatação de que as mulheres ganham menos em posições semelhantes na universidade e no mundo corporativo [será que ainda vale a pena diferenciar ?] e pela su

William Kentridge

Gastei um dinheiro que não tinha mas não me arrependi. Sábado às 2 horas assistimos a "Refulsal of the Hour" dirigido pelo artista sul-africano William Kentridge. Uma mistura sensacional de música, desenho, animação, filme, balé, ópera e literatura numa reflexão muito interessante sobre nossa relação com o tempo. Aqui imagens da instalação "Refusal of Time", da qual saiu o espetáculo. A vida é boa de vez em quando.

Poesia minha: Temporada dos Dinossauros

--> Foto minha: Retrato no Meio da Fuga A temporada dos dinossauros Cuando despertó, el dinosaurio todavía estaba allí. “El dinosaurio” de Augusto Monterroso antes que ele bata eles abrem a porta e se entra com a bota borrada de barro e lama eles trazem logo o melhor tapete da casa enquanto ele nos fala seus sonhos de grandeza eles balançam a cabeça e gralham “é isso mesmo apoiado apoiado” se sorrir eles gargalham se tossir eles engasgam quando ele pausa eles empestam o ar com murmúrios e pigarros quando franze a testa começa o festival ele recebem o sinal e rosnam de cor os sete nomes do diabo então promete vingança e eles salivam alto o seu muito obrigado então pede por justiça e eles buscam a forca e penduram o primeiro miserável vagabundo traidor degenerado no meio da praça então promete o osso que dorme debaixo da nossa pele e carne e estraçalham a cidade até que chegue o dia e

Literatura com as palavras dos outros

Pode ser coincidência mas acho que não. Trombei com dois escritores, agora poetas, que trabalham com palavras de outras fontes: Robin Coste Lewis e Kenneth Goldsmith. Robin Coste Lewis publicou seu primeiro livro chamado Voyage of the Sable Venus and Other Poems e o poema principal é composto de descrições de catálogos de objetos de arte onde aparecem mulheres negras. Aqui um breve exemplo tirado da resenha do livro que saiu na revista New Yorker : Statuette of a Woman Reduced to the Shape of a Flat Paddle Statuette of a Black Slave Girl Right Half of Body and Head Missing Head of a Young Black Woman Fragment from a Statuette of a Black Dancing Girl O segredo claramente está no jogo de manipulação dos textos originais na página, usando o verso para enfatizar ou dar novo significado ao texto original. Kenneth Goldsmith escreveu livros copiando coisas como todas as palavras que ele pronunciou durante uma semana, toda uma transmissão do jogo mais longo de beisebol ou