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Simone de Beauvoir e as definições essencialistas do feminino

A falha principal da humanidade não é a ignorância, mas a recusa do saber.
Tenho dado para ler a vários alunos meus o capítulo introdutório de O segundo sexo de Simone de Beauvoir. Gostei muito que tivessem citado um pedacinho dele no exame do ENEM. Acho paradoxal que algumas pessoas se queixem de reações, digamos, toscas sobre o assunto ao mesmo tempo em que dão máxima visibilidade a essas declarações, em alguns casos óbvias e em outras vindas de ilustres desconhecidos que são alçados a um destaque imenso por sua imbecilidade. 
Acho fundamental ler o texto, voltar ao texto, sempre. Mesmo porque o assunto está longe de ultrapassado, ainda que o livro seja de 1949. Uma grande amiga esteve semana passada numa palestra na universidade sobre « Negociação Para Mulheres », palestra criada provavelmente pela constatação de que as mulheres ganham menos em posições semelhantes na universidade e no mundo corporativo [será que ainda vale a pena diferenciar ?] e pela suposição de que é assim porque os homens negociam melhores que as mulheres. A palestra estava toda baseada numa diferenciação básica : os homens negociam pensando « the world is my oyster » e as mulheres pensando « you can’t draw blood from a turnip » e daí ladeira abaixo com a ideia de que as mulheres não deveriam se « masculinizar » no trabalho, completo com ilustrações comparando mulheres com cabelo preso e terninho a mulheres com batom, vestidos fru-frus e cabelo « arrumado ». 
Ofereço aqui no meu canto, no original e em duas traduções, um trecho fundamental em que Simone de Beauvoir fala sobre a articulação entre essencialismo e dominação . As partes interessantes/problemáticas da tradução estão em negrito:

Pour prouver l’infériorité de la femme, les antiféministes ont alors mis à contribution non seulement comme naguère la religion, la philosophie, la théologie mais aussi la science : biologie, psychologie expérimentale, etc. Tout au plus consentait-on à accorder à l’autre sexe « l’égalité dans la différence ». Cette formule qui a fait fortune est très significative : c’est exactement celle qu’utilisent à propos des Noirs d’Amérique les lois Jim Crow [arrêtés et règlements établissant la ségrégation raciale aux USA, 1876-1964] ; or, cette ségrégation soi-disant égalitaire n’a servi qu’à introduire les plus extrêmes discriminations. Cette rencontre n’a rien d’un hasard : qu’il s’agisse d’une race, d’une caste, d’une classe, d’un sexe réduits à une condition inférieure, les processus de justification sont les mêmes. « L’éternel féminin » c’est l’homologue de « l’âme noire » et du « caractère juif ». Fonte

In proving woman’s inferiority, the anti-feminists then began to draw not only upon religion, philosophy, and theology, as before, but also upon science – biology, experimental psychology, etc. At most they were willing to grant ‘equality in difference’ to the other sex. That profitable formula is most significant; it is precisely like the ‘equal but separate’ formula of the Jim Crow laws aimed at the North American Negroes. As is well known, this so-called equalitarian segregation has resulted only in the most extreme discrimination. The similarity just noted is in no way due to chance, for whether it is a race, a caste, a class, or a sex that is reduced to a position of inferiority, the methods of justification are the same. ‘The eternal feminine’ corresponds to ‘the black soul’ and to ‘the Jewish character’. Fonte

A fim de provar a inferioridade da mulher, os antifeministas apelaram não somente para a religião, a filosofia e a teologia, como no passado, mas ainda para a ciência: biologia, psicologia experimental etc. Quando muito, consentia-se em conceder ao outro sexo "a igualdade dentro da diferença". Essa fórmula, que fêz fortuna, é muito significativa: é exatamente a que utilizam em relação aos negros dos E.U.A. as leis Jim Crow; ora, essa segregação, pretensamente igualitária, só serviu para introduzir as mais extremas discriminações. Esse encontro nada tem de ocasional: quer se trate de uma raça, de uma casta, de uma classe, de um sexo reduzidos a uma condição inferior, o processo de justificação é o mesmo. O "eterno feminino" é o homólogo da "alma negra" e do "caráter judeu”. Fonte

Que aconteceria se a gente passasse a partir daí a definir a mulher brasileira não pelo seu jeitinho ou jeitão de fazer ou deixar de fazer isso ou aquilo mas sim, por exemplo, como uma das que mais morrem assassinadas no mundo? Fonte

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