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Showing posts from March, 2016

Um resumo da história do debate entre vegetarianos e carnívoros

William Hogarth - O the Roast Beef of Old England ('The Gate of Calais) Diálogo imaginário entre defensores do vegetarianismo e da carne como alimento: - O sangue dos animais alimenta a agressividade e crueldade nos homens. - A carne abundante dá coragem e vitalidade aos homens para a sua luta pela vida. - Carne causa problemas de saúde. - Carne é uma fonte importante de proteína. - 18% do efeito estufa é causado pela criação de animais de corte. 40% dos grãos cultivados no mundo são usados para alimentar animais de corte. - A fome é uma questão de distribuição de renda e só não come carne quem não pode. O consumo médio de carne na China passou de uns 15 kilos por pessoa por ano a mais de 50 quilos em 25 anos. - Os estadounidenses comem o dobro de carne dos chineses e têm muito mais câncer e diabetes. - Os estadounidenses comem o dobro de carne e têm uma expectativa de vida maior que os chineses. - Nada melhora nesse planeta enquanto continuarmos sendo essas sepult

Fatos e sentimentos, história e futuro

"Eu muitas vezes achava que o simples fato, o fato mecânico, não está mais perto da verdade do que o sentimento, o rumor, a visão imprecisa. Porque repetir os fatos senão para encobrir nossos sentimentos? O desenvolvimento desses sentimentos, o transbordamento desses sentimentos para além dos fatos, é o que me fascina. Eu tento encontrá-los, recolhe-los, protegê-los. Essas pessoas testemunharam o que para todos os outros ainda é desconhecido. Eu me senti como se estivesse documentando o futuro." Fim do livro "Vozes de Chernobyl" de Svetlana Alexievich

traduzindo: Corpo em Agosto de Robin Coste Lewis

"Carità Romana" na visão de Peter Paul Rubens, a cena remete à história de um pai condenado a morrer de fome, cuja filha alimenta escondida, amamentando-o. As estranhezas meio perversas do poema me fizeram pensar nesse quadro O Corpo em Agosto Porque quando eu era criança, Deus me puxou para o colo dEla. Porque quando eu sentava no colo dEla, Ela lia para mim. Porque a história que Ela mais lia era a que eu menos gostava. Porque todos os dias Ela abria aquele livro verde fininho e dizia Essa é a história da sua vida. Porque do início ao fim eram só três páginas. Eu acredito naquela estrada que é infinita e negra e cegamente segue em frente por todo o sempre. Eu acredito que crocodilos engolem pedras para ajudá-los a digerir o caranguejo. Porque até o século XX as pessoas ainda podiam morrer de uma sensação. E porque minha fome é tão profunda que eu tenho vergonha de levantar a cabeça.  Porque a memória – não a gravidade – nos tem cravados a esse tr

Resumos didáticos e idiossincráticos: três tipos de nostalgia

Mais ou menos assim me contaram sobre três tipos de nostalgia: Odisseu esculpe sua cama de uma árvore viva para que ela tivesse raízes firmes no chão de casa mas não consegue ficar mais de três dias em casa e parte de novo porque sua casa não é uma casa, não comporta uma família, é um convite à solidão: o emaranhado de estrada de água do Mediterrâneo. Éneas deixa Tróia em chamas para trás carregando seu pai moribundo nas costas para cruzar uma banheira de água salgada e se transformar em algo que já não é seu, numa terra estrangeira, numa língua estrangeira. Dizem os incautos que ele funda; na verdade ele se funde. Hannah vive dois mundos desproporcionais: na rua, no trabalho, na vida, ela perambula dentro de uma língua que a abraça e absorve mas não se transforma quando sai de sua própria boca nem quando entra pelos seus ouvidos. Em casa, sozinha, no lápis traçando linhas no papel em cima da mesa é que Hannah vive de verdade, na sua língua, língua que é também líng

Traduzindo: "O oficio dos cadáveres" de Brenda Ríos

A Macabéa de Clarice Lispector, Marcélia Cartaxo e Suzana Amaral O ofício dos cadáveres Brenda Ríos Quando mais me afasto de Lispector mais próxima me sinto... tenho Macabéa na cabeça e me comove à media em que a vou compreendendo ainda que não a veja há quase três anos. Que coisa é a literatura que nos faz sentir compaixão por seres que não existem, que não são? Por que a construção ficcional pode ser mais verídica que o que aconteceu hoje de manhã no trabalho ou no mercado, no acidente que testemunhamos no caminho de volta para casa? Como ignoramos os detalhes da nossa própria relação com os demais e nos lembramos de detalhes mínimos, coloridos, das vidas em romance, das vidas dos personagens, dos pensamentos dos personagens? Que somos capazes de dar quando nos fechamos e preferimos a porta de outro mundo lendo do que viver com nós mesmos? ler pareceria um exercício de covardia. outro dia falava de Sándor Márai e seus romances que tratam da amizade entre homens, romances muit

Recordar é viver: em terra de Engels e Martin Claret quem tem um Hegel é rei

Plebiscito Arthur Azevedo A cena passa-se em 1890. [1] A família está toda reunida na sala de jantar. O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade. Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga. Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias. Silêncio De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta: — Papai, que é plebiscito? O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme. O pequeno insiste: — Papai? Pausa: — Papai? Dona Bernardina intervém: — Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal. O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos. — Que é? que desejam vocês? — Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito. — Ora essa, rapaz! Então tu vai

Lendo sobre Chernobyl, pensando na Samarco

Bento Gonçalves Essas são traduções apressadas de breves trechos da versão em inglês do livro de Svetlana Alexievich que estou lendo, Vozes de Chernobyl. Soldados: "Dei meu quepe para o meu filho pequeno. Ele pediu muito. E não tirava o quepe da cabeça o tempo todo. Dois anos depois eles fizeram o diagnóstico: um tumor no cérebro... Você pode escrever o resto sozinha. Eu não quero falar mais." [40] Sujeito chega em casa do trabalho e diz para a mulher, "me disseram que amanhã ou eu vou para Chernobyl ou tenho que devolver a minha caderneta do Partido". "Mas você não está no Partido". "Eu sei, então fiquei pensando: como é que eu arranjo uma caderneta do Partido até amanhã de manhã?" [44] "Tenho minhas prórias memórias. Meu cargo oficial era comandante das unidades de guarda. Algo como diretor do apocalipse. [ Risos ] Isso. Escreve aí isso mesmo." [46] "Nós não entendíamos tudo, mas nós vimos tudo." [51] Bento

Obituário - George Martin

"Quando entrei na EMI, o critério pelo qual uma gravação era julgada era sua fidelidade ao original. Se fosse gravasse um disco tão bom que você não conseguisse diferenciar a gravação da performance de fato, aquilo era o seu ápice. Eu questionei aquilo. Pensei, muito bem, estamos todos tirando fotos de um evento existente. Mas não temos que tirar uma foto; podemos pintar. E essa ideia me incentivou a experimentar." “When I joined EMI, the criterion by which recordings were judged was their faithfulness to the original. If you made a recording that was so good that you couldn’t tell the difference between the recording and the actual performance, that was the acme. And I questioned that. I thought, O.K., we’re all taking photographs of an existing event. But we don’t have to make a photograph; we can paint. And that prompted me to experiment.”

Tradução: "Mississippi" de William Faulkner

O Mississippi começa em um saguão de hotel em Memphis, Tennessee e se estende até o Golfo do México. É salpicado de cidadezinhas concêntricas em relação aos fantasmas de cavalos e mulas que no passado haviam sido amarrados nas forquilhas em volta da corte de justiça dos condados, e pode-se quase dizer que o estado tem apenas duas direções, norte e sul, já que até pouco tempo atrás era impossível viajar para o leste ou para o oeste a não ser que se estivesse a pé ou montado em cavalos ou mulas. Mesmo sendo um rapaz no início de sua vida adulta, para chegar de trem a uma sede de condado adjacente há trinta milhas de distância, você teria que viajar noventa milhas em três direções em três estradas de ferro diferentes. Ilustração para edição de luxo da coletânea de contos Big Woods No começo era terra virgem – ao oeste, nas margens do Rio Grande, [1] os pântanos aluviais perpassados por negras lagoas de água quase imóvel e impenetráveis com cana e cipó e cipreste e freixo

Linton Kwezi Johnson

Ele foi o segundo poeta vivo e o primeiro poeta negro a ser publicado na coleção Penguin Modern Classics em 2002, para indignação de muitos 2002 senhores respestáveis na Inglaterra. 2006 Linton Kwezi Johnson optou escrever sua poesia em patois da Jamaica onde ele nasceu e recitar seu trabalho em cima de bases de regaae tanto em apresentações ao vivo como em discos que ele mesmo produzia na sua própria gravadora.  Quem ama línguas e ama o inglês como eu deve se deliciar como os jamaicanos moldaram o inglês padrão numa língua cheia de vocais generosas. E essa poesia também entra numa longa tradição de reescrever a ortografia para significar um registro oral fora dos padrões oficiais que existe na língua inglesa pelo menos desde Shakespeare. Deixo um só exemplo da poesia sutil de LKJ aqui:   Duas versões do poema "Inglan is a Bitch", primeiro com LKJ sozinho, sem música, e depois acompanhado com música. INGLAN IS A BITCH wen mi jus come to Landan toun