Skip to main content

Tradução: "Mississippi" de William Faulkner


O Mississippi começa em um saguão de hotel em Memphis, Tennessee e se estende até o Golfo do México. É salpicado de cidadezinhas concêntricas em relação aos fantasmas de cavalos e mulas que no passado haviam sido amarrados nas forquilhas em volta da corte de justiça dos condados, e pode-se quase dizer que o estado tem apenas duas direções, norte e sul, já que até pouco tempo atrás era impossível viajar para o leste ou para o oeste a não ser que se estivesse a pé ou montado em cavalos ou mulas. Mesmo sendo um rapaz no início de sua vida adulta, para chegar de trem a uma sede de condado adjacente há trinta milhas de distância, você teria que viajar noventa milhas em três direções em três estradas de ferro diferentes.

Ilustração para edição de luxo da coletânea de contos Big Woods
No começo era terra virgem – ao oeste, nas margens do Rio Grande,[1] os pântanos aluviais perpassados por negras lagoas de água quase imóvel e impenetráveis com cana e cipó e cipreste e freixo e carvalho e eucalipto; ao leste, as serranias com madeira de lei e os prados onde as montanhas Appalachianas morriam e os búfalos pastavam; ao sul as ermas com pinho e os carvalhos pendurados com musgo vivo e os grandes pântanos, menos terra que água emboscada por jacarés e jararacas, onde a Luisiana no seu tempo começaria.

E onde no começo dos tempos os predecessores moveram-se furtivamente com seus artefatos simples, e construíram seus montes e desapareceram, legando-nos apenas seus montes nos quais a raça sucessora de que se tem documentação, os Muskhogees,[2] deixariam as caveiras dos seus guerreiros e chefes e bebês e carcaças de ursos caçados e cacos de vasos e martelos e pontas de flechas e de vez em quando uma espora pesada de prata dos espanhóis.

Naquela época bandos de veados vagavam desalarmados feito fumaça, e ursos, panteras e lobos nos matagais e baixadas de rios, e todas as criaturas menores – texugos e gambás e castores e doninhas e o rato alma-escarrado [não almiscarado: alma-escarrado]; eles ainda estavam ali e parte da terra ainda era virgem no começo do século XX quando o menino começou ele próprio a caçar. Mas exceto pelos seus traços transparecendo por detrás do rosto de algum branco ou negro, os Chickasaws e Choctaws e Natchez e Yazoos[3] já tinham desaparecido como havia acontecido com seus predecessores; e o povo com o qual o menino se arrastava pelo mato eram os descendentes dos Sartoris e dos de Spains e dos Compsons[4] que haviam sido comandantes de regimentos em Manassas e Sharpsburg e Shiloh e Chickamauga,[5] e os McCaslins e Ewells e Holstons e Hogganbecks cujos pais e avós serviram como soldados nos mesmos regimentos, e de vez em quando um Snopes também, porque no começo do século XX os Snopes estavam em todos os cantos: não apenas atrás dos balcões de lojinhas encardidas de periferia cuja clientela era principalmente de negros, mas atrás das escrivaninhas dos presidentes dos bancos e das mesas dos diretores de corporações de distribuição de varejo e nos decanatos das Igrejas Batistas, comprando as casas georgianas decadentes e repartindo-as em apartamentos e em seus leitos de morte dotando as igrejas de anexos e fontes batismais como mementos deles mesmos ou simplesmente por puro terror da morte.


[1] Big River é o apodo do Rio Mississippi.
[2] Muskogee é o tronco linguístico indígena que incluía os Chickasaws e Choctaws, povos que habitavam o estado do Mississippi e aparecem na ficção de Faulkner. A travessia forçada do Rio Mississippi pelos Choctaws expulsos do estado do Mississippi para o então território do Oklahoma em 1831 ficou conhecida como trail of tears [trilha das lágrimas] e é descrita por Alexis de Tocqueville. Os Chickasaws seguiriam o mesmo caminho em 1936. O processo de remoção duraria cerca de 20 anos.
[3] Tribos indígenas que habitavam o estado do Mississippi até o século XIX.
[4] Nomes de famílias que habitam o mundo ficcional de Faulkner. A partir daqui o ensaio histórico/geográfico sobre o estado natal de Faulkner começa a misturar elementos memorialísticos [do “menino” Faulkner] e a genealogia fictícia dos personagens dos seus contos e romances. 
[5] Batalhas da Guerra Civil nos Estados Unidos onde regimentos vindos do Mississippi lutaram, aqui citados em ordem cronológica: Manassas [Virgínia, 1861], Sharpsburg [Maryland, 1862], Shiloh [Tennessee, 1862], Chickamauga [Georgia, 1863]

Comments

Popular posts from this blog

Contos: "O engraçado arrependido" de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato conta em "O engraçado arrependido" a história trágica de um homem que não consegue se livrar do papel de palhaço da cidade, papel que interpretou com maestria durante 32 anos na sua cidade interiorana. Pontes é um artista, um gênio da comédia e por motives de espaço coloco aqui só o miolo da introdução em que o narrador descreve o ser humano como “o animal que ri” e descreve a arte do protagonista: "Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, e...

Poema meu: Saudades da Aldeia desde New Haven

Todas as cartas de amor são Ridículas. Álvaro Campos O Tietê é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia, mas o Tietê não é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia porque não corre minha aldeia. Poucos sabem para onde vai e donde vem o ribeirão da minha aldeia, 
 que pertence a menos gente 
 mas nem por isso é mais livre ou menos sujo. O ribeirão da minha aldeia 
 foi sepultado num túmulo de pedra para não ferir os olhos nem molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia, mas, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, 
 a memória é o que há para além do riberão da minha aldeia e é a fortuna daqueles que a sabem encontrar. Não penso em mais nada na miséria desse inverno gelado estou agora de novo em pé sobre o ribeirão da minha aldeia.

Uma gota de fenomenologia

Esse texto é uma homenagem aos milhares de livrinhos fininhos que se propõem a explicar em 50 páginas qualquer coisa, do Marxismo ao machismo e de Bakhtin a Bakunin: Uma gota de fenomenologia Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir essa mesma coisa, mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele p...