O Mississippi
começa em um saguão de hotel em Memphis, Tennessee e se estende até o Golfo do
México. É salpicado de cidadezinhas concêntricas em relação aos fantasmas de
cavalos e mulas que no passado haviam sido amarrados nas forquilhas em volta da
corte de justiça dos condados, e pode-se quase dizer que o estado tem apenas
duas direções, norte e sul, já que até pouco tempo atrás era impossível viajar
para o leste ou para o oeste a não ser que se estivesse a pé ou montado em
cavalos ou mulas. Mesmo sendo um rapaz no início de sua vida adulta, para
chegar de trem a uma sede de condado adjacente há trinta milhas de distância, você
teria que viajar noventa milhas em três direções em três estradas de ferro
diferentes.
Ilustração para edição de luxo da coletânea de contos Big Woods |
E onde no
começo dos tempos os predecessores moveram-se furtivamente com seus artefatos
simples, e construíram seus montes e desapareceram, legando-nos apenas seus
montes nos quais a raça sucessora de que se tem documentação, os Muskhogees,[2]
deixariam as caveiras dos seus guerreiros e chefes e bebês e carcaças de ursos
caçados e cacos de vasos e martelos e pontas de flechas e de vez em quando uma
espora pesada de prata dos espanhóis.
Naquela época
bandos de veados vagavam desalarmados feito fumaça, e ursos, panteras e lobos
nos matagais e baixadas de rios, e todas as criaturas menores – texugos e
gambás e castores e doninhas e o rato alma-escarrado [não almiscarado:
alma-escarrado]; eles ainda estavam ali e parte da terra ainda era virgem no
começo do século XX quando o menino começou ele próprio a caçar. Mas exceto
pelos seus traços transparecendo por detrás do rosto de algum branco ou negro,
os Chickasaws e Choctaws e Natchez e Yazoos[3]
já tinham desaparecido como havia acontecido com seus predecessores; e o povo
com o qual o menino se arrastava pelo mato eram os descendentes dos Sartoris e
dos de Spains e dos Compsons[4]
que haviam sido comandantes de regimentos em Manassas e Sharpsburg e Shiloh e
Chickamauga,[5]
e os McCaslins e Ewells e Holstons e Hogganbecks cujos pais e avós serviram
como soldados nos mesmos regimentos, e de vez em quando um Snopes também,
porque no começo do século XX os Snopes estavam em todos os cantos: não apenas
atrás dos balcões de lojinhas encardidas de periferia cuja clientela era
principalmente de negros, mas atrás das escrivaninhas dos presidentes dos
bancos e das mesas dos diretores de corporações de distribuição de varejo e nos
decanatos das Igrejas Batistas, comprando as casas georgianas decadentes e
repartindo-as em apartamentos e em seus leitos de morte dotando as igrejas de anexos
e fontes batismais como mementos deles mesmos ou simplesmente por puro terror
da morte.
[1]
Big River é o apodo do Rio Mississippi.
[2]
Muskogee é o tronco linguístico indígena que incluía os Chickasaws e Choctaws,
povos que habitavam o estado do Mississippi e aparecem na ficção de Faulkner. A
travessia forçada do Rio Mississippi pelos Choctaws expulsos do estado do
Mississippi para o então território do Oklahoma em 1831 ficou conhecida como trail of tears [trilha das lágrimas] e é
descrita por Alexis de Tocqueville. Os Chickasaws seguiriam o mesmo caminho em
1936. O processo de remoção duraria cerca de 20 anos.
[3]
Tribos indígenas que habitavam o estado do Mississippi até o século XIX.
[4]
Nomes de famílias que habitam o mundo ficcional de Faulkner. A partir daqui o
ensaio histórico/geográfico sobre o estado natal de Faulkner começa a misturar
elementos memorialísticos [do “menino” Faulkner] e a genealogia fictícia dos
personagens dos seus contos e romances.
[5]
Batalhas da Guerra Civil nos Estados Unidos onde regimentos vindos do
Mississippi lutaram, aqui citados em ordem cronológica: Manassas [Virgínia,
1861], Sharpsburg
[Maryland, 1862], Shiloh [Tennessee, 1862], Chickamauga [Georgia, 1863]
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