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Showing posts from March, 2008

Profecia

A noite há de remendar o que o dia arrebentou e remendar e arrebentar outra vez amanhã e depois e assim dia e noite, em sucessão finita, alheios a qualquer um de nós até que o sol, velho e cansado, finalmente se apague de vez e só reste então a pequena e fria lua, muda, sozinha, em seu humilde trajeto amoroso em volta da terra, as duas finalmente livres.

Eduardo Viotti Leão - Capítulo 6

... No começo Otilina tentara não transparecer enfado ou irritação durante os agora intermináveis almoços de domingo. Em silêncio, assistia os filhos, a nora, o genro e os netos encadear, um atrás do outro, assuntos frívolos que não levam a lugar nenhum, só para não dar tréguas ao silêncio. Lutavam contra o silêncio para que a farsa convencional não se desmanchasse e a verdade não viesse à tona na frente de todos, com o ímpeto de um tronco que se solta de repente do fundo de um lago silencioso e salta sobre a água, furioso. Lutavam todos contra o silêncio e escondiam a solidão. Melhor era quando eles levavam a falsidade embora com eles e Otilina podia estar sozinha,. Sozinha em casa ela podia chorar, como uma criança, pela solidão, pelo desamparo, pela crueldade da indiferença humana, pela crueldade maior da dura ausência indiferente do seu Deus naquela que era a sua hora mais difícil. Depois da constatação do estado terminal, sua desilusão se espalhava, insidiosa, em direção ao passad

Eduardo Viotti Leão - Capítulo 5

... Agora a sua mãe estava à beira da morte, categoricamente desenganada com aquela circunspeção típica que os médicos compartilham com os advogados. Garantiam que Otilina não tinha mais que seis meses de vida; que não havia mais nada a fazer a não ser fingir e tentar minorar o sofrimento de todos. Agora Eduardo dissimulava paciente a hostilidade que sentia pela mãe, esperando que ela finalmente partisse e libertasse a todos eles do constrangimento daquele sofrimento público. Mas a doença modificara também Otilina, tornando-a fria, distante e até rancorosa com todos da família, principalmente com o antes adorado primogênito. As visitas semanais, obrigatórias, vinham se tornando exercícios cada vez mais complicados de diplomacia. Durante os almoços de domingo ela irritava-se com as coisas mais triviais, e não aceitava que os acessos de cólera só lhe faziam ainda mais mal. Volta e meia lhes oferecia o espetáculo lamentável de uma crise aguda e dizia impropérios, levantava-se subitamente

Eduardo Viotti Leão - Capítulo 4

... Morando com os avós, ele e sua irmã continuavam a freqüentar as mesmas escolas, clubes e festas que os seus pares narcisisticamente chamavam de “os melhores”. Eduardo sabia, e sabia que os outros sabiam, que ele, ali entre os melhores, era o pior: o mais pobre entre os mais ricos e marcado por um pai desaparecido nas piores circunstâncias. Essa pobreza, tão relativa, tão francamente ridícula para quem tem que suar pelo pão de cada dia, tornou-o diferente da maioria dos seus companheiros de geração. Enquanto muitos deles passariam a vida torrando dinheiro com entusiasmos passageiros, passatempos absurdos e paixões ridículas que invariavelmente desembocavam em tédio indiferente, ele se aproveitaria ostensivamente de todos os privilégios e isenções da sua classe ao máximo, até recuperar e depois dobrar o patrimônio familiar e se tornar membro de um outro grupo ainda mais seleto, dos mais ricos do país. Quem o conhecia nos negócios reconhecia nessa objetividade a sua maior virtude. Edu

Eduardo Viotti Leão - Capítulo 3

... Otilina sempre adorara ao seu filho como um santo ou herói que salvara a família do abismo abominável da pobreza e da vergonha. Com os olhos marejados e a voz embargada, ela, até bem pouco tempo, não perdia a oportunidade de fazer o mesmo discurso, longo e constrangedor, em que Eduardo e ela, Otilina, figuravam como mártires: “Criei e eduquei meus dois filhos, o Eduardo e a irmã, sozinha. E agüentei tudo, sempre sozinha, sem a ajuda de ninguém. Agüentei meus próprios pais me olhando com um olhar superior e condescendente, querendo decidir o nosso futuro todo sem sequer me consultar. Agüentei todos os falsos amigos, cochichando e rindo pelas minhas costas, fazendo pelas minhas costas comentários falsamente chocados, cheios de inveja e prazer, sobre a nossa desgraça. Ficamos os três sozinhos no mundo depois do desastre. O bom de cair assim, como nós caímos, de uma vez, de repente, é que assim a gente descobre o valor de cada um e descobre que quase ninguém vale nada nesse mundo e apr

Eduardo Viotti Leão - Capítulo 2

Severiano Leão, o pai de Eduardo, desaparecera deixando a família em situação precária quando o filho tinha doze anos e reaparecera brevemente naquele mesmo escritório quinze anos mais tarde. Eduardo já era então um homem feito de 27 anos, casado com dois filhos, estabelecido, preparado, no lugar certo e na hora certa para lucrar espetacularmente com a avalanche de dinheiro do governo e dos estrangeiros que inundaria o estado (e afogaria muita gente também) nos próximos anos. Severiano pareceu-lhe um velho feio, com a pele manchada, magro, desgastado, quase inofensivo: uma sombra da autoridade onipresente que dominara a sua infância e da ausência sufocante que marcou a sua adolescência. Aquele velhote magrelo parecia atolar-se na cadeira de mogno, escorregando devagar no assento de couro até o rosto quase sumir por baixo da mesa. Nervoso, mas completamente concentrado, Severiano falava num tom monocórdio, mastigado, pastoso, as órbitas dos olhos correndo a sala de um lado para o outro,

Eduardo Viotti Leão - Capítulo 1

He once called her his basil plant; and when she asked for an explanation, said that basil was a plant that flourished wonderfully on a murdered man’s brains. George Eliot ¿donde está la fuerza que causa tanta miseria? Juan Rulfo A chuva tinha parado. Afrouxou a gravata de seda com as mãos impecáveis, levantou-se e foi até a janela do seu escritório. Lá embaixo o vapor se desprendia do asfalto. Sozinho no céu sem nuvens o sol torrava inclemente as cabeças que passavam como pontinhos de um lado para o outro na calçada. É um problema atrás do outro, a vida. O sujeito resolve um e já fica esperando pelo próximo. Um cofre cheio, escondido há anos debaixo da sua cama de casal no apartamento de Laura, desaparecera. Seis sujeitos, vestidos com uniforme de firma de mudança, entraram no apartamento no meio da tarde quando Laura não estava e levaram o cofre numa Kombi com placa fria, que foi abandonada sem deixar vestígios em um lote vago no Céu Azul. Serviço de gente qualificada e informada. Pa

Decasia

Recomendo com força o blogue da revista Modo de Usar & Co para quem gosta de poesia e quer conhecer coisas interessantes. Inspirado pelo blogue, resolvi ressuscitar um poema antigo. O título refere-se à um projeto que tem música contemporânea e filmes corroídos, digamos, pelo tempo. Com música de Michael Gordon e filme de Bill Morrison, dá para ver clips do filme e do filme-concerto – inspirados pelo Fantasia de Disney em http://www.decasia.com. A leitura da primeira parte faz mais sentido depois de ver pelo menos um clipe - a primeira estrofe descreve trechos de Decasia. A segunda parte dispensa comentários. Decasia a orquestra de cinquenta e cinco fúrias pulsavançatravancapitando em massa minimalesca e os trombones glissando festivosinistros pontuam o ácido que vem e passa e volta pela película do filme engolindo e regurgitando as imagens em seqüência de sonho mecânico: o tear nervolento que roda na mão a manivela que roda na mão do moço o carrossel que roda a dez centavos, a rod

Diário do Império - Tudo muito "lógico"

Moro nos EUA e faz algum tempo e vivendo o dia a dia aqui dá para compreender com clareza que a lógica do mercado capitalista aqui é criar demandas onde elas não existiam antes, para continuar expandindo o consumo mesmo depois que todas as necessidades básicas de consumo tenham sido satisfeitas. Absolutamente TODAS as ofertas e promoções em um supermercado americano são do tipo “compre dois pelo preço de um” e se você quer [ou precisa] “economizar” tem que, paradoxalmente, comprar mais do que precisa e levar para casa dois potes de sorvete ao invés de um só; e dois frangos, dois pacotes de cereal, duas garrafas com o dobro de refrigerante, etc. Não é por nada que a obesidade é um problema nacional, mas é um problema pior entre as minorias que são maioria da camada mais pobre do país. Os ricos enquanto isso compram alimentos orgânicos, sempre mais caros e embalados em porções menores por causa do seu “valor agregado”. O desafio para o capitalismo americano é fazer consumir [e endividar-

Poesia Mexicana - Rosario Castellanos

Rosario Castellanos era de uma familia rica do sul do México. Nasceu em 1925 e vivia à sombra do irmão herdeiro do nome e das terras, até mesmo depois que ele morreu ainda jovem – a família ia visitá-lo no cemitério uma vez por semana. Já aos 15 anos deu mostras de que, apesar de tímida e retraída, não iria aceitar passivamente as regras do jogo – recusou-se ir à festa de debutantes do clube chique de Comitlán. Seus pais e professores desprezavam a literatura, mas ela foi para a o DF, formou-se em filosofia, dedicou-se de corpo e alma aos indígenas de Chiapas e doou todas as terras da família quando os pais morreram em 1948. Foi poeta, ensaísta, romancista, dramaturga. Casou-se tarde para a época, teve três filhos, perdeu dois, separou-se. Traduziu Emily Dickinson. Morreu cedo demais, no auge de sua carreira, em um acidente doméstico trágico, enquanto servia como embaixadora do México em 1974. Destino Matamos lo que amamos. Lo demás no ha estado vivo nunca. Ninguno está tan cerca. A ni

Aparências

Curioso como a gente pode fazer um paralelo com o blues e o jazz nos Estados Unidos e o Samba no Brasil. Inicialmente consideradas música “selvagem” ou “primitiva” e relegadas a espaços marginalizados, essas expressões musicais “renascem” [aspas porque nunca morreram, só foram varridas para baixo do tapete] com músicos e cantores brancos, gerando lucros fantásticos para uma nascente indústria da música e do entretenimento. E o que era “aviltante” e “tosco” de repente vira “charmoso”, “chique” e até reconhecidamente sofisticado. Músicos e cantores, brancos, ingleses e norte-americanos de classe média, que se apaixonaram pela música negra americana não são culpados; e foram eles foram até responsáveis por ajudar a resgatar da miséria os mestres do blues americano e levá-los, às vezes pela primeira vez, a um registro em estúdio com condições minimamente decentes. No Brasil devemos a essa redescoberta os sensacionais discos do Cartola. O problema é um processo que se repete no Brasil: quan

Hilda Hilst

Controversa o escambau! Hilda Hilst está é lá encima, meus amigos. HH tem que ser lida, e muito, e com inteligência, simplesmente porque é uma das melhores artistas da literatura em português, incluídos aí homem, mulher, velho, novo, vivo, morto. Dez Chamamentos ao Amigo I Se te pareço noturna e imperfeita Olha-me de novo. Porque esta noite Olhei-me a mim, como se tu me olhasses. E era como se a água Desejasse Escapar de sua casa que é o rio E deslizando apenas, nem tocar a margem. Te olhei. E há tanto tempo Entendo que sou terra. Há tanto tempo Espero Que o teu corpo de água mais fraterno Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta Olha-me de novo. Com menos altivez. E mais atento.