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Delirando em Pindorama

Um dia vai aparecer alguém no Brasil com a sagacidade política de Martin Luther King e perceber que as crenças mais entranhadas do país sobre si mesmo podem ser usadas como combustível para a mudança. Eu fico imaginando alguém que, “impávido que nem Mohammad Ali” e “tranquilo e infalível como Bruce Lee” dirá o seguinte: “Queremos Democracia Racial Já! Somos de fato um país mestiço e é por isso mesmo não podemos mais admitir que a desigualdade e o preconceito destruam o sonho de uma sociedade onde todas as raças vivem juntas e têm oportunidades iguais em todos os sentidos: na saúde, na educação, na obtenção de uma moradia digna, no trabalho, no acesso não só ao consumo mas também à produção de cultura, na política, nas artes. Oportunidades iguais para todos os mestiços de todas as cores: eis aí o caroço do nosso angu e a semente de uma verdadeira democracia racial que há de primar pelo profundo respeito e generosa aceitação de todas as diferenças. Para alcançar uma democra...

Admirável velho mundo novo

De camisa azul, o neo-liberalismo; de cabelo comprido o neo-positivismo; e de blusa azul escura, o neo-fundametalismo religioso. Obviamente os três estão com pressa e uma baita fome de cérebros. Não sei se a foto foi tirada em Bagdá ou em Nova Iorque. Talvez em São Paulo. Os Anglicanos, claro, não têm Papa, aquele tal infalível. Eles têm Rowan Williams, o bispo Anglicano chefe. Ele anda tentando lidar diplomaticamente com grupos da sua igreja na Inglaterra que ameaçam ir embora para a Igreja Católica. A causa desse motim religioso é a ordenação de "bispas" na Igreja Anglicana Inglesa. Ratzinger, o infalível de Roma fez a gentileza de convidar publicamente os rebeldes para "voltar" ao manto de Roma, onde mulheres nunca vão além de freiras. Numa entrevista Rowan Willians, que é também teólogo, fez a seguinte reflexão : "One of the odd things about fundametalism in its American form, but not exclusively, is that it's par...

Breves notas sobre o mensalão

[Esse é um assunto bem passado, mas um excelente post no Descurvo me motivou a escrever essas breves notas cansadas. Lá fora o circo continua comendo solto com o palhaço bufão Jefferson e o palhaço triste Zé Dirceu no centro do picadeiro.]   O PT paga hoje seus anos de atuação como "UDN de macacão" [sábias palavras do Brizola], agora que se transformou num PTB de gravata? Acho que nem isso. O julgamento do mensalão na mídia não passa de uma novela de baixa audiência e os indignados de hoje serão os pragmáticos de amanhã e a cortina de fumaça continua ocultando a natureza do sistema que mantém as coisas como estão. Li recentemente um artigo muito interessante sobre a situação política no México e, com todas as diferenças, o que há é um longo processo de "reformas" políticas dominado sempre pelo velho PRI em nome da continuidade. Continuidade de quê? No caso brasileiro, na superfície fica a continuidade daquilo que veio de Minas Gerais com Eduardo Azeredo, Clési...

Palpites sobre palpites

Curiosa mescla de despretensão e eloqüência no ensaio de Alcir Pécora que encontrei aqui através de sugestão de Masé Lemos no FCBK. 1. Baseado em impressão pessoal, Pécora, que anda lendo ficção e poesia contemporânea no Brasil e achando-a "fraca", fala na "relativa perda da capacidade cultural da literatura de se mostrar relevante, não apenas para mim, mas para muitos que estão comprometidos com a cultura: como se alguma coisa se introduzisse nela (sem eventos violentos) e a tornasse inofensiva, doméstica." Vire o texto ao contrário e você vai encontrar uma enorme melancolia pelos bons tempos em que a literatura era ofensiva e pública. Mas eu acho que muita coisa "fraca" e "irrelevante" foi [e é] feita para ser literatura ofensiva e pública... 2. Logo depois Pécora fala da multidão de escrevinhadores espalhados pelos quatro cantos de tudo nesse mundo pindorâmico como "um problema basicamente de inflação simbólica". Gente demais e...

Nada ao mesmo tempo aqui e agora

[foto: Duane Hanson , Tourists II , 1988 , fibreglass and mixed media, with accessories] A mania de falar no celular o tempo todo e de tirar fotografias de tudo me parece sinais de uma incapacidade das pessoas de viver o lugar e o momento presentes. O sujeito está na rua conversando com a mulher que ficou em casa e ignorando o amigo logo ao lado ou está em casa conversando com o amigo que está na rua e ignorando a mulher sentada do outro lado da mesa de jantar. E vejo com frequência turistas que parecem mais preocupados em registrar rapidamente as coisas que "viram", quase que só pelo enquadramento estreito da tela da máquina, para então seguir enfrente [“pronto, já conheci o Central Park”] e registrar que “viu” muitas outras coisas "importantes", tirando literalmente duzentas fotografias que talvez nunca consigam ver.

E agora, Guimarães? A rose is a Rosa is a rose?

Um canadense interessado no assunto me pediu uma opinião sobre a tradução para o inglês de Grande Sertão: Veredas. Eu não quis explicar em termos gerais; achei que era melhor simplesmente tomar um trecho da tradução e fazer uma avaliação detalhada. Escolhi o óbvio, a abertura do livro. A abertura do livro no original: Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. A tradução para o inglês: It’s nothing. The shots you heard were not men fighting. God be praised. It was just me there in the back yard, target shooting down by the creek, to keep in practice. I do it because I enjoy it; have ever since I was a boy. Os comentários [estão em inglês porque eu não ganho dinheiro escrevendo blogue, mas acho que dá para entender]: 1. Nonada is old Portuguese; it means trifles. The translator explains the term in standard English instead o...

Personagens menores e memoráveis de Guimarães Rosa: Don'Ana

"Don’Ana do Janjão e Janjão da Don’Ana são respectivamente esposo e esposa, e, pois, co-proprietários da fazenda da Panela-Cheia. Janjão da Don’Ana é um paspalhão, e não conta. Mas Don’Ana do Janjão é uma mulher-homem, que manda e desmanda, amansa cavalos, fuma cachimbo, anda armada de garrucha, e chefia eleitorado bem copioso, no município."

Diário da Babilônia – um pequena provocação

Quando se discute a educação superior no Brasil, especialmente o debate entre educação pública e privada, me espanta a desinformação [que eu não sei se é intencional ou não] a respeito do sistema Americano, onde trabalho. Deixo aqui apenas dois dados provocativos: 1. A maior parte do sistema universitário americano é pública, instituições financiadas pelos estados e mesmo minicípios. 2. Yale, assim como todas as outras universidades privadas de maior destaque nos Estados Unidos, fornece algum tipo de auxílio financeiro a 49% dos seus alunos de graduação. Qualquer família que ganhe menos de 60.000 dólares por ano não precisa pagar um tostão para seu filho estudar aqui [se ele conseguir uma vaga – menos de 10% dos candidatos entra]. A universidade agora cogita, inclusive, deixar de cobrar mensalidades de todos os alunos indistintamente [isso não é filantropia ianque: o pagamento de mensalidades representa apenas 17% da renda da universidade]. Quem quiser saber um pouco mais sobre a...

Pase Libre / Crónica de una fuga

O cineasta Adrián Caetano tomou o livro de memórias de Claudio Tamburrini e fez o melhor filme até hoje sobre a repressão das ditaduras militares latino-americanos na “guerra suja”. O filme Crónica de una fuga, baseado em Pase Libre é uma lição sobre muitas coisas importantes sobre o que poderíamos chamar de período pós-atrocidades na América Latina. Por exemplo, sobre o que Adorno, falando da arte pós-holocausto, dizia ser a necessidade de falar de “meaning and truth and suffering that neither deny nor affirm the existence of a world transcendent to the one we know” e do que ele chamava de um novo imperativo categórico, que é “arrange their thought and action that Auschwitz would not repeat itself, [that] nothing similar would happen”. Acho que o final do livro ilustra o que eu estou dizendo. O protagonista está num carro, livre e reflete: “Estoy inmensamente feliz. Siento que mi vida y mi destino me pertenecen. Y me imunda un optimismo desbordante sobre el futuro. Después de At...

Masturbação Mental Também é Cultura 2

Às vezes me parece que o mundo dos adultos se divide cada vez mais entre aqueles que adoram as crianças como se fossem semi-deuses ou seres humanos superiores e aqueles outros que acham as crianças estúpidas e simplesmente insuportáveis. Eu tenho um filho de 7 anos que eu admiro sem reservas nem senso crítico e, portanto, pertenceria certamente ao primeiro grupo, mas tenho muitas reservas quanto à idealização da infância. A infância é fascinante, rica, livre de algumas amarras das quais os adultos padecem, mas daí a transformar isso em uma bondade inata... Acho um exagero quando as pessoas acham que qualquer criança é sempre boa simplesmente porque é pura e inocente – puro ou impuro, inocente ou experiente, o ser humano é um ser freqüentemente vil [e ocasionalmente maravilhoso] e as crianças são seres humanos! Um exemplo recente do noticiário: um menino de 7 anos invadiu um zoológico e em 35 minutos matou brutalmente vários animais no centro de répteis de Alice Springs na Austrália. O...

Eu, o “excêntrico”?

Volta e meia eu me sinto um ET. Por exemplo, a gente não pega qualquer tipo de sinal de TV em casa, nem antena nem cabo. Não é que a gente nunca assista televisão, mas aqui a gente só assiste DVDs ou alguma coisa rápida de vez em quando na internet. Novela, jogo de futebol ou jornal de TV só na casa dos outros, ou seja quase nunca. Também fico completamente fora da média nacional de leitura. Eu realmente adoro ler e dizem que no Brasil é mais fácil alguém arrombar seu carro e levar um par de meias velhas do que um livro novinho. E agora deu no jornal: pesquisa da UnB com quase 2 mil profissionais brasileiros mostra que 85% das mulheres e 95% dos homens preferem ser liderados por homens no trabalho. E eu que achava que era brincadeira quando as pessoas me perguntavam se não era difícil trabalhar com mulheres… Foram mulheres a minha orientadora de doutorado e os três membros do meu comitê e é mulher a chefe do meu departamento. Eu gostei, não porque elas são mulheres mas porque elas trab...

Para comemorar o 13 de maio: As cotas e as máscaras

Sinceramente acho que o 13 de maio é para comemorar, mas para lembrar e refletir sobre as relações raciais no Brasil. Então lá vai: As cotas e as máscaras Ainda que alguém possa fazer um ou outro reparo específico a forma como se quer implantar sistemas de cotas no Brasil, acho que as cotas são fundamentais por uma questão de justiça. Acho que esses reparos podem ser feitos ser qualquer comprometimento da idéia em si como forma de ajustes durante o processo de implementação e que portanto não faz sentido ser contra as cotas por causa disso. Muito antes pelo contrário, acho que é hora de clareza de posições: e as cotas servem exatamente para dar clareza a esse que é um dos vários debates que são tradicionalmente escamoteados no Brasil. Esse escamoteamento não é novo e não tem nada de inocente – não se trata daquilo que Machado de Assis uma vez chamou de “inconsciente hipocrisia”. Não é à toa que somos um dos países mais desiguais do mundo. Na época do império todos no Brasil eram a favo...

O universal como recalque

As questões de gênero, de etnia e de classe não são diferentes da questão nacional ou mesmo da questão regional no estudo da literatura. Temos aí cinco recortes possíveis [entre muitos outros] para se ler um texto produtivamente e todos os cinco recortes são válidos desde que se reconheça algo que para mim é o óbvio: nenhum deles exaure o texto completamente. A partir desse reconhecimento humilde dos limites humanos de uma crítica qualquer, questões de gênero, etnia, classe, nação e região são recortes legítimos como formas de abordar o texto, e vão funcionar na medida em que o crítico tenha criatividade, bom senso e conhecimento para tirar o melhor proveito de cada um. Manuel Bandeira era homem, era branco, era de uma classe alta em decadência econômica, era basileiro e era pernambucano. E era muitas outras coisas também: era um homem do seu tempo, era um pernambucano morando no Rio de Janeiro, era um homem com um perfil psicológico específico só dele, era um tradutor ativo, era um pr...

Curto ensaio sobre a paranóia

Curto ensaio sobre a paranóia O paranóico é o sujeito que se transforma num intérprete compulsivo de tudo - tudo à sua volta, da peruca do vizinho à cor dos ônibus, tem um sentido importante e precisa ser explicado. Salvador Dali tem um texto interessante em que ele classifica a estética daqueles quadros dele em que uma montanha é um rosto, etc de “paranóica”. O combustível da paranóia é um sentimento primário de que ninguém escapa: medo. Mas isso em si não explica muito porque é claro que nem todo medroso é um paranóico. Além do medo o paranóico tem fé no sentido coerentes de todas coisas do mundo, uma convicção de que, por exemplo, se alguém tem câncer ou morre atropelado é por algum motivo “superior”. Mas, de novo, essa fé, como aquele medo, em si, não explica o paranóico. Afinal essa é uma fé que move muita gente que não padece desse mal. Para essas pessoas essa fé implica em tranquilidade ou pelo menos um consolo para a aceitação difícil de cânceres e atropelamentos que continuam ...

A ambiguidade e o diabo

Através do excelente blogue do Idelber Alvelar , “O biscoito fino e a massa” cheguei a um texto interessante de Alan Pauls sobre 1968, que começa assim: “Grosso modo, os 40 anos de Maio 68 produziram três reações: 1) ‘Maio 68 é responsável por todos os males que vivemos hoje: falta de autoridade, relativismo absoluto, crise dos valores’; 2) ‘Maio 68 é responsável por todas as conquistas das quais o presente pode se gabar: pluralismo, direitos das minorias, laicismo, anti-autoritarismo’; 3) ‘Maio 68 teve coisas geniais e coisas estúpidas’. A pior, a mais medíocre, conformista, ignorante e reacionária é obviamente a terceira.” A terceira opção me parece na melhor das hipóteses fruto do desejo de falar sem dizer coisa alguma. Em geral é algo bem pior que isso; trata-se de anular as diferenças para deixar que o consenso de Washington continue a desfilar os seus tanques, metafóricos e literais, pelo mundo. Mas é preciso pintar a ambiguidade com matizes mais ricos. Essa história de falar se...

No meio da tempestade

Às vezes as coisas acontecem assim e nem toda a calma nem todo o amor nem toda a paciência do mundo são suficientes para navegar aqui nesse mar revolto. Então eu penso em como era antes: como eu ficava quieto, parado, olhando para uma parede qualquer esperando a tempestade passar, paralisado, incapaz de um gesto de reação, com medo da raiva que era a minha única língua, a única que eu conhecia. A única coisa que eu queria naqueles vários momentos em que a tempestade entrava pela casa adentro [foram tantas vezes] mesmo com todas as portas e janelas hermeticamente fechadas era morrer. Mas eu não quero mais morrer. Eu já morri demais. Eu já cansei de morrer. Eu ainda tenho medo tanto quanto eu tinha medo antes, talvez até pior agora, cada vez pior porque cada vez há mais a se perder do que antes. Mas agora eu quero: o livro do Matisse, um i-pod com todas as músicas do Portishead e do Radiohead, uma pasta de couro para o computador, muitas outras coisas eu quero e não quero nada para mim. ...