Skip to main content

No meio da tempestade

Às vezes as coisas acontecem assim e nem toda a calma nem todo o amor nem toda a paciência do mundo são suficientes para navegar aqui nesse mar revolto. Então eu penso em como era antes: como eu ficava quieto, parado, olhando para uma parede qualquer esperando a tempestade passar, paralisado, incapaz de um gesto de reação, com medo da raiva que era a minha única língua, a única que eu conhecia. A única coisa que eu queria naqueles vários momentos em que a tempestade entrava pela casa adentro [foram tantas vezes] mesmo com todas as portas e janelas hermeticamente fechadas era morrer. Mas eu não quero mais morrer. Eu já morri demais. Eu já cansei de morrer. Eu ainda tenho medo tanto quanto eu tinha medo antes, talvez até pior agora, cada vez pior porque cada vez há mais a se perder do que antes. Mas agora eu quero: o livro do Matisse, um i-pod com todas as músicas do Portishead e do Radiohead, uma pasta de couro para o computador, muitas outras coisas eu quero e não quero nada para mim. Quero as palavras para servir à expressão da minha observação, da minha sensibilidade, da minha experiência, da minha memória, em um monte de outros que não existem, que eu criei do nada e que são tudo o que eu não sou. Observação, a sensibilidade, a experiência, a memória – sem chegar ao segundo passo, mortal: aquilo que transforma observação, sensibilidade, experiência e memória numa coisa morta, separada da vida, do sangue, da respiração; completamente separada da vida por medo da morte, que contradição! Mais uma contradição humana: transcender a vida com o poder da abstração que mata qualquer coisa em que toca para quê? Não sei se o ser humano é antes de qualquer coisa um ser amoroso ou um ser medroso; talvez seja as duas coisas e daí tantos paradoxos na vida humana – fêmea lambendo a cria recém nascida e hiena rindo nervosa à espera de mais uma quase carcaça. A fêmea lambendo a cria amando com a pureza de quem não ama as coisas e não os nomes que substituem as coisas. A hiena que não mata de uma vez porque quer saborear na carne alheia o medo do animal que se desespera com a chegada da morte que ainda não veio, mas que vem [e que morte é essa que não vem?]. Amar e ter medo me puxam para a frente e para trás o tempo todo, me fazem caminhar e me fazem fincar os pés no chão. Mas as coisas acontecem à revelia do nosso amor e da nossa covardia, à revelia da nossa vontade de caminhar ou de empacar contra tudo e todos. As coisas acontecem. Não param de acontecer. Mesmo quando tudo parece imóvel no meio do gelo e da neve do meio do inverno ou no calor mais parado do meio do verão as coisas continuam acontecendo. Mesmo assim os relógios dentro dos nossos corpos continuam correndo aqui dentro. Esses rios subterrâneos que falam de morte e outras coisas terríveis ou maravilhosas não param de fluir, eles correm para atar as duas pontas da vida [concepção e morte], nos pedindo um minuto de silêncio por dia. Silêncio eu faço, então, em homenagem aos rios subterrâneos que correm no fundo de mim mesmo, mesmo nos dias mais calmos – e hoje não é um dia dos mais calmos. Silêncio absoluto em homenagem à essa correnteza. Silencio profundo como os rios subterrâneos que correm fundo dentro do meu corpo e me preparam para o fim, esse fim que não passa de uma comunhão profunda com o mundo. Morrer é derreter-se no mundo. Fazer parte do mundo, dissolver-se na terra, na boca dos vermes, ser parte da terra, dos animaizinhos mais mesquinhos, os vermes cegos e mudos que comem, defecam, se reproduzem e comem, defecam e reproduzem no escuro absoluto da terra quente e úmida. Porque às vezes as coisas acontecem assim e nem toda a calma nem todo o amor nem toda a paciência do mundo são suficientes para navegar aqui nesse mar revolto. Então agora eu fecho os olhos e enfrento a tempestade sem medo de morrer. Morrer mais uma vez, mas dessa vez sem medo. Esse é o meu destino, que seja assim. Mas desespero, não. Desespero é o mais agudo afastamento de Deus.

Comments

Popular posts from this blog

Diário do Império - Antenado com a minha casa [BH]

Acompanho a vida no Brasil antes de tudo pela internet, um "lugar" estranho em que a [para mim tenebrosa] classe m é dia brasileira reina soberana, quase absoluta, com seus complexos, suas mediocridades e sua agressividade... Um conhecido, daqueles que ao inv és de ter um blogue que a gente visita quando quer, prefere um papel mais ativo, mandando suas "id éias" para os outros por e-mail, me enviou o texto abaixo, que eu vou comentar o mais sucintamente possível: resolvi a partir de amanh ã fazer um esforço e tentar, al ém do blogue, onde expresso minhas "id éias" passivamente, tentar me comunicar diretamente com as pessoas por carta... OS ALUNOS DE UNIVERSIDADES PARTICULARES DERAM UMA RESPOSTA; E A BRIGA CONTINUOU ... 1 - PROVOCAÇÃO INICIAL Estudar na PUC:............... R$ 1.200,00 Estudar no PITÁGORAS:..........R$ 1.000,00 Estudar na NEWTON:.....R$ 900,00 Estudar na FUMEC:............ R$600,00 Estudar na UNI-BH:........... R$ 550,00 Estudar na

Uma gota de fenomenologia

Esse texto é uma homenagem aos milhares de livrinhos fininhos que se propõem a explicar em 50 páginas qualquer coisa, do Marxismo ao machismo e de Bakhtin a Bakunin: Uma gota de fenomenologia Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir essa mesma coisa, mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele p

Protestantes e evangélicos no Brasil

1.      O crescimento dos protestantes no Brasil é realmente impressionante, saindo de uma pequena minoria para quase um quarto da população em 30 anos: 1980: 6,6% 1991: 9% 2000: 15,4%, 26,2 milhões 2010: 22,2%, 42,3 milhões   Há mais evangélicos no Brasil do que nos Estados Unidos: são 22,37 milhões da população e mais ou menos a metade desses pertencem à mesma igreja.  Você sabe qual é? 2.      Costuma-se, por ignorância ou má vontade, a dar um destaque exagerado a Igreja Universal do Reino de Deus e ao seu líder, Edir Macedo. A IURD nunca representou mais que 15% dos evangélicos e menos de 10% dos protestantes como um todo. Além disso, a IURD diminuiu seu número de fiéis   nos últimos 10 anos de acordo com o censo do IBGE, ao contrário de outras denominações, que já eram bem maiores. 3.      Os jornalistas dos jornalões, acostumados com a rígida hierarquia institucional católica não conseguem [ou não tentam] entender muito o sistema