Skip to main content

Diario de um imigrante como se enquadrar "sem traumas"

Como se enquadrar:
Primeiro, pratique o aspecto passivo, que é o mais fácil e o mais importante, do enquadramento social de um estrangeiro ao seu novo país. Observe sempre os nativos e expresse um determinado sentimento [indignação, medo, alegria, tristeza, etc.] apenas quando eles assim se expressarem e da maneira como eles se expressam. Um pequeno atraso entre o início do seu sorriso e o dos nativos à sua volta nunca será percebido por eles, mas um sorriso diferente do deles ou um sorriso dado no momento errado denuncia seu estatuto de forasteiro imediatamente. Não se preocupe com o conteúdo de cada gesto que vê; isso não tem a menor importância. Não queira saber porque sorrir naquele exato momento, nem o que aquele sorriso expressa além de demonstrar concretamente a normalidade dentro daquele grupo. É a forma, a forma como eles sorriem, que nos importa aqui. Não mostre os dentes além da conta, não emita sons diferentes, não feche os olhos se eles não fecham os deles, mexa a cabeça ou as mãos ou qualquer outra parte do corpo exatamente como eles o fazem, nem mais nem menos. É inútil perguntar porque eles fazem as coisas desse jeito e impossível saber exatamente o seu significado. Concentre-se na pura superfície das coisas, porque o conteúdo que vive escondido em cada gesto misterioso de um país estranho acaba nos distraindo do que é realmente importante. A normalidade se manifesta aos normais sempre pela transparência, ela só se faz notar precisamente quando não está presente. Ninguém pensa na normalidade além do estrangeiro, que depende dela para se adaptar. Os nativos só pensam na anormalidade irritante dos imigrantes que insistem em aparecer aqui e ali, manchando a ordem das coisas. Vista-se como eles, os nativos, nos mínimos detalhes, sem se esquecer de meias, bonés, adereços, etc. Observe e reproduza todos os seus hábitos, mesmos que eles lhe pareçam sem sentido. Acompanhe atento o noticiário local e procure repetir as frases feitas das primeiras páginas dos jornais, das capas das revistas e dos programas de televisão, inserindo-as nas suas falas, se possível do mesmo jeito que os nativos. Sua opinião de fato a respeito de qualquer coisa não tem a menor importância nesse processo de enquadramento e sempre que suas idéias e opiniões romperem com a normalidade, você atrairá terríveis olhares de estranhamento e até repulsa, nunca de surpresa grata ou admiração e se isso acontecer com freqüência os nativos nunca o aceitarão como um igual, ou mesmo como um companheiro. 99% das pessoas vivem imersas o tempo inteiro na normalidade do seu ambiente cultural e o conceito de novidade dentro dessa normalidade está ligado a um jogo de regras fixas com um conjunto fechado de elementos e de uma combinação nova desses elementos. Se você pensar por si mesmo vai acabar trazendo elementos de fora que causarão um estranhamento que os nativos certamente rejeitarão e não perdoarão nunca. Nunca.

Comments

Popular posts from this blog

Contos: "O engraçado arrependido" de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato conta em "O engraçado arrependido" a história trágica de um homem que não consegue se livrar do papel de palhaço da cidade, papel que interpretou com maestria durante 32 anos na sua cidade interiorana. Pontes é um artista, um gênio da comédia e por motives de espaço coloco aqui só o miolo da introdução em que o narrador descreve o ser humano como “o animal que ri” e descreve a arte do protagonista: "Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, e...

Poema meu: Saudades da Aldeia desde New Haven

Todas as cartas de amor são Ridículas. Álvaro Campos O Tietê é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia, mas o Tietê não é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia porque não corre minha aldeia. Poucos sabem para onde vai e donde vem o ribeirão da minha aldeia, 
 que pertence a menos gente 
 mas nem por isso é mais livre ou menos sujo. O ribeirão da minha aldeia 
 foi sepultado num túmulo de pedra para não ferir os olhos nem molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia, mas, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, 
 a memória é o que há para além do riberão da minha aldeia e é a fortuna daqueles que a sabem encontrar. Não penso em mais nada na miséria desse inverno gelado estou agora de novo em pé sobre o ribeirão da minha aldeia.

Uma gota de fenomenologia

Esse texto é uma homenagem aos milhares de livrinhos fininhos que se propõem a explicar em 50 páginas qualquer coisa, do Marxismo ao machismo e de Bakhtin a Bakunin: Uma gota de fenomenologia Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir essa mesma coisa, mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele p...