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Eduardo Viotti Leão - Capítulo 7 [final]

A passagem dos cinqüenta para os sessenta anos é uma segunda adolescência. Tudo muda de novo, no corpo e fora dele, rápido demais. Em contraste com o espanto causado pelo corpo em seu implacável movimento interno (músculos, órgãos, ossos, pele e pelos), as muitas mudanças do lado de fora não tinham qualquer sabor, doce ou amargo, de novidade. A vida: o trabalho, as pessoas, boas ou más, continuavam mudando iguais, tudo cada vez mais repetitivo. Até o mesmo sexo transformara-se numa rotina aborrecida. Quantas vezes Eduardo não quis parar no meio do caminho, virar-se para o lado e simplesmente dormir? Pensei melhor, meu bem, e, sinceramente, não vale a pena. Ele e a esposa dormiam em quartos separados há muito tempo, mas com Laura era diferente. No apartamentinho classe média que Laura achava um luxo e ele uma bela porcaria, o que era em tese diversão agora lhe parecia um fardo. Mas, por motivos que Eduardo não saberia explicar, ele continuava a visitá-la metodicamente, duas vezes por semana, no meio da tarde. Na segunda adolescência, as coisas pareciam voltar a acontecer com Eduardo, depois de tanto tempo, sem que ele soubesse explicar, sem que ele pudesse controlar.
E agora o desaparecimento do cofre. A campainha do interfone tocou, ele afastou-se da janela e voltou à sua mesa. Ajeitou a gravata e pelo interfone mandou a secretária fazer entrar o delegado. Soltou um longo suspiro resignado: um problema atrás do outro, a vida. O sujeito resolve um e já fica esperando pelo próximo.
- Boa tarde, Doutor. Lamentável o ocorrido. Vamos fazer de tudo para resolver essa situação o quanto antes. Antes de qualquer coisa eu queria começar reconfirmando com o senhor a quantia exata no cofre... Eduardo interrompe:
- A quantia é a que eu mandei. Ele se impacienta com a cara de espanto aparvalhado do delegado. Ironicamente era cada vez mais difícil tolerar qualquer tipo de incompetência e o mundo ironicamente parecia cada vez mais cheio de imbecis e incapazes de todos os matizes. O delegado ensaia um recomeço:
- Bom, nós estamos completamente empenhados em recuperar o dinheiro e ... Eduardo interrompe de novo:
- Recuperar todo o dinheiro e pegar todos os envolvidos. O delegado tenta retomar seu discurso:
- Claro, prender os criminosos e recuperar o dinheiro todo ou pelo menos parte... Eduardo interrompe mais uma vez:
- Eu quero tudo e quero os criminosos; faço questão. O tom calmo e afável é típico dos que não costumam ser contrariados.
Não era o dinheiro: à essa altura qualquer cofre cheio embaixo de qualquer cama não faria diferença. Mas era preciso ser sensato. Seus colegas o respeitavam, seus subordinados o temiam e amigos e parentes o admiravam pela objetividade fria, mas a sensatez implacável era o seu maior atributo. A sensatez construíra palácios como aquele edifício e casas e fazendas e fábricas e bancos e centros culturais e museus e reformatórios, que levavam o seu nome ou o de alguém da família, mas ela crescia viçosa na lama e na fumaça de barracos empilhados na beira de rios imundos, moendo a carne e os ossos dos mais fracos, impondo sua marca no gado humano que transitava de lá para cá pelas ruas lá embaixo, oferecendo e negando ajuda em troca de poder, sufocando os insatisfeitos e os insubordinados e distribuindo migalhas ou pelo menos esperanças aos mansos e submissos, ditando uma ordem inflexível para as coisas do mundo girando à sua volta.
Com um sorriso limpo escondendo os dentes brancos perfeitamente alinhados e os mesmos olhos claros impenetráveis na moldura fina das sobrancelhas retas ele dirige ao delegado a voz inenfática, impessoal:
- Que fique claro: eu quero os criminosos e o dinheiro, e o mais rápido possível. O que você precisar, você pede a mim e eu lhe forneço pessoalmente: arma, carro, informante, documento, autorização especial, salvo-conduto, contato, qualquer coisa. Não peça nada a ninguém além de mim e me deixe saber do o que acontece da sua boca antes de qualquer outro. Para mim é questão de não abrir precedentes no fundamental, delegado – ele se levanta e estende a mão – obrigado, passar bem. A campainha em surdina soou, a secretária entrou no escritório imediatamente e acompanhou o delegado atordoado até a porta. Eduardo, com os olhos claros, duros, impenetráveis, outra vez perdidos na janela, pensou: Um problema atrás do outro, a vida.

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