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Notas para um livro impossível sobre crítica

John Updike, que teve uma longa carreira como escritor de resenhas para jornais e revistas, dizia que não fazia o menor sentido reclamar que um autor "não havia atingido o que nunca quis atingir" com uma determinada obra. Trocando em miúdos: é tolice esperar que Spielberg faça um filme de Godard ou que Godard faça um filme de Spielberg. Mas nem sempre é tão fácil assim discernir a partir da obra o que é que o seu autor queria que ela fizesse. Sem falar que muitas obras interessantes acabam fazendo coisas que seus autores nunca quiseram que elas fizessem; uma vez soltas pelo mundo, as obras sofrem metamorfoses impressionantes na cabeça dos seus vários leitores diferentes. Se há um "eu-autor" numa resenha crítica, ele pertence ao crítico antes de tudo.

Mas para isso há que encontrar um público, inclusive um público crítico. Oscar Wilde, com aquela ironia habitual, disse o seguinte: "Minha peça foi um sucesso absoluto. O público é que foi um fracasso". Que muitos artistas hoje trabalhem apesar de uma inquietante falta de público para o que eles estão fazendo não é um problema em si. Mais difícil que discernir as intenções de um autor na sua obra é saber que diacho é esse negócio de público. Não é por nada que Oscar Wilde se refere ao teatro, uma dessas artes em que o contato com o público é visceral e direto, ali, no momento da performance e nas contas da bilheteria. O que eu acho problemático é tomar o que Oscar Wilde disse sem a ironia do autor da frase  [cá estou eu interpretando intenções, ou me escondendo atrás do espantalho do autor - a ironia é  do dito, é minha, ou é do Oscar Wilde?]. A ausência ou indiferença do público não é pouca coisa, não é um problema desimportante. É um grande desafio que devia preocupar muito o artista. 

Junto as pontas [crítica, intenção e público] com uma frase do diário de Witold Gombrowicz; "Nunca assinei contrato para servir aos leitores ideias inéditas. Em mim certas ideias que circulam pelo ar que todos respiramos são combinadas num sentido todo especial e unicamente Gombrowicziano e esse sentido sou eu". Gombrowicz não apenas junta as pontas para mim, mas ainda toca em outro ponto delicado dessa complicada equação. Arte é, sim, feita de ideias [além de outras coisas], mas o seu tratamento para as ideias não é o que se espera de qualquer uma dessas coisas que se arvoram o nome ciência [um rótulo mágico já que tanta gente o preza com fervor religioso]. E muito menos serviço de mensagens. Mas veja bem: Gombrowicz ao mesmo tempo trata de chutar com o bico do sapato a canela de muitos dogmas do estranho puritanismo formalista do século XX [e faz isso nos anos 50 quando ele estava no seu apogeu!]: o "eu" do autor existe e está, sim, entranhado na obra, a presença das ideias e o tratamento dado a elas pelo artista é, sim, importante e não dá para negar a existência de um certo contrato de prestação de serviços entre o artista e o seu público.

Comments

Puxa, que tema importante, mas confesso que fiquei um pouco perdida nas suas ideias.
Quer dizer, a ligação entre autor e público não é direta. Tem uma intermediação (editoras, imprensa, etc) e mesmo que o autor se angustie com esse problema, nem sempre ele tem o poder de mudar a situação. Não está só na obra e na intenção.

Essa questão me interessa muito mas não tenho nenhuma resposta. Na minha tese sobre Jorge Andrade consegui explorar um pouco isso, porque ele é um caso interessante com picos de público, e alguns fracassos retumbantes, e muita amargura acumulada no processo.

Copiei alguns parágrafos que escrevi:

"Mas tal ação [criar uma obra] só se completa com a resposta do público, quando se estabelece um contato. Se a expressão (dizer) era fundamental para Jorge Andrade — se, entre tantas atividades possíveis, ele escolheu a escrita como sua forma de agir no mundo — seu caminho só se realiza quando ele pode reconhecer, em alguém, um sinal de aceitação. Alguém que viu, entendeu e se envolveu. Contato.

O escritor que mostra publicamente sua obra — no teatro, na imprensa, na televisão — recebe respostas variadas e dispersas. Por se tratar de uma mensagem aberta (dirigida a todos potencialmente, e a ninguém especificamente), os sinais de contato podem vir de muitos lugares. Um comentário interessado de alguém (amigo, desconhecido e/ou colega de profissão), uma crítica publicada na imprensa, os números de bilheteria ou audiência. Tais respostas podem ser positivas ou negativas, existindo também a possibilidade do silêncio, ausência de contato.

Para além das estratégias comerciais das emissoras — que lidam com números grandiosos —, é importante valorizar as percepções individuais, a marca que uma obra pode deixar na vida de alguém. São sensibilidades privadas que não se medem numericamente, mas mostram um registro emocional, quando a obra se insere na vida do espectador em momento de reflexão e aprendizagem.

Se a arte, para Jorge Andrade, é o processo doloroso de reconhecer, entende-se então sua angústia pessoal pela falta de reconhecimento. Se ele, como artista, dedicou-se ao trabalho árduo de conhecer os outros, a falta de reconhecimento dos outros (do público) o atingiu como ingratidão, porque seu esforço não foi recíproco."
Sabina,
Primeiramente, que bonito o texto da sua tese! Eu acho importante a gente pensar na questão do público e da relação com ele fora de uma perspectiva completamente conformisma [as regras do jogo são essas, são esses os poderes constituídos e essas as suas expectativas]. Desse ponto de vista eu pensei em algumas coisas:
1. Na dificuldade do crítico de se colocar como sujeito do ato crítico. Por hábio a gente escreve coisas como "o autor queria isso, o público queria aquilo, a obra queria não-sei-o-quê" mas o crítico só pode oferecer um testemunho da sua experiência subjetiva, da sua imaginação com relação a todas essas entidades [autor, obra, público].
2. No quão doloroso mas crucial é para o batalhão de escritores contemporâneos encarar de frente a questão do silêncio ensurdecedor a respeito do que escrevem. As resopstas que eles dão a essa questão [inclusive a resposta de fingir que o problema não existe] vai deixar uma marca importante no que eles escrevem.
3. Estou lendo o diário que Gobrowicz publicou numa revista nos anos 50. Ele diz coisas muito interessantes sobre essas relações entre escritor, obra e público. Vale a pena conhecer.
Gostei dos três pontos. Adiciono uma lembrança:

Numa disciplina de pós que fiz na Letras da Usp, sobre a recepção crítica de Machado de Assis, houve uma aula interessante sobre isso (a questão não é nova para os escritores)

Ele falava de uma teoria sobre a mudança de "Memórias Póstumas". Seria que, por essa época, Machado percebeu com nitidez que não havia nem haveria leitores, que seus livros não venderiam mais por melhores que fossem. Então ele desistiria de tentar alcançar um "público", e escreveria o que queria mais diretamente, tipo dane-se.

Parece que há registros de correspondências (?) entre Machado e o editor Garnier (tudo isso a ser verificado, estou escrevendo de memória) sobre a questão do preço do livro.

Machado argumentaria que, se o livro custasse menos, haveria mais leitores, etc etc

Garnier (ou outro editor da época) teria respondido, por sua experiência, que não havia mais leitores. Os leitores que existiam eram aqueles, e ele fazia o preço do livro estimando que era isso e pronto.



Sem dúvida que a formação de um público mais amplo no Brasil, por questões de poder aquisitivo, teria que passar pela expansão radical de bibliotecas e do acervo delas. Mesmo que o livro custasse metade do que ele custa em média hoje, uma parte imensa da população não teria acesso a eles porque a ideia de "contruir uma biblioteca" não tem muito sentido para quem não se ocupa disso profissionalmente. As bibliotecas aqui onde moro são muito boas e são uma opção de lazer barato [na verdade gratuito] além de servir de refúgio para muita gente que vem procurar silêncio, algo para entreter as crianças ou mesmo apenas um lugar quente no inverno e com ar condicionado no verão. Quem vende livro para valer, em escala industrial são poucos e, na maioria das vezes, desconhecidos do público, digamos por falta de outro termo melhor, "intelectual" - esses livros têm também um imenso mercado de segunda-mão, porque os seus leitores discartam os livros depois de ler. Esse outro público "intelectual" depende de formação e, outra vez, de poder aquisitivo. As universidades a as bibliotecas sustentam em parte as vendas de muitos dos "long-sellers" [livros que podem nunca ter sido best-seller mas que mantém uma venda razoável e constante por anos e anos a fio]. O triste é que muita gente no Brasil, por uma deformação de classe, insiste em achar que todo mundo deveria construir uma biblioteca em casa. Mas dito tudo isso, fica muito claro para mim que o livro brasileiro é, sim, caríssimo. Pelo jeito dos tempos da Garnier até hoje. Mas editoras como a LP&M tem um catálogo muito bom e uma distribuição [parece] bem ampla de livros de bolso, né? Isso é uma conversa longa!

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