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Racismos nas Américas

Em 1915 foi projetado o primeiro filme em seção oficial dentro da Casa Branca. Era "O Nascimento de uma Nação", baseado num livro de propaganda do grupo paramilitar Ku Klux Klan, que àquela altura tinha praticamente desaparecido. Entusiasmado o presidente Woodrow Wilson comparou o filme ao ato de "escrever história com luz". A KKK foi reconstruída sob o impacto do filme e no meio da década de 20 estima-se que já tivesse pelo menos 3 milhões de membros. Em 1924 Indiana e Colorado eram dois estados completamente dominados por políticos identificados com o grupo, que agora perseguia não apenas negros, mas judeus, católicos e imigrantes em geral. 

Em Belo Horizonte, nos mesmos anos 20, chegou o arcebispo Antônio dos Santos Cabral, que começou a proibir e perseguir o culto a Nossa Senhora do Rosário, empurrando para a periferia da cidade essas igrejas e festas que mobilizam a população negra em Minas Gerais desde os tempos da colônia. Já na construção da cidade nos fins do século XIX a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, o largo e o cemitério dos negros foram demolidos e apagados - não resta nada deles além de, possivelmente, defuntos enterrados debaixo de prédios e asfalto nas cercanias da esquina de Timbiras e Bahia. Freguesia do Curral Del Rey onde Belo Horizonte foi construída tinha 5.524 pessoas e destes 3.860 eram pretos e pardos, o que equivale a 77 por cento da população. Calcula-se que hoje apenas 2% dos habitantes do entorno original da cidade planejada sejam negros. Além do abraço da avenida do Contorno a coisa muda de figura, obviamente.

Em 1954 Gilberto Freyre publica relatório encomendado pela ONU sobre o conflito racial na África do Sul. Ali apresenta claramente a tese de que haveria duas formas diferentes de colonizar, uma da Europa do norte [germânica e protestante] e outra da Europa Ibérica [latina e católica]:

 “quando ouvimos de sul-africanos que veem os negros como impedimento à civilização europeia [...] nós, brasileiros, pensamos imediatamente nos descobrimentos feitos em nosso país não por homens que têm uma boa proporção de sangue branco, mas que seriam chamados de negros nos Estados Unidos, como Machado de Assis e Tobias Barreto, mas por negros como Dom Silverio, defunto arcebispo de Mariana, como Juliano Moreira, eminente psiquiatra ao qual devemos o desenvolvimento de técnicas terapêuticas para mazelas mentais no Brasil, ou Teodoro Sampaio, geólogo e geógrafo de renome, todos os quais possuíam quase nada de sangue branco nas veias”.

Três anos antes, em 1951, o governo Getúlio Vargas promulgava a Lei Afonso Arinos, que proíbe a discriminação racial. Por quê uma lei desse tipo numa cultura onde reinaria a harmonia entre raças? Katherine Dunham, bailarina e coreógrafa negra estadounidense, tinha sido barrada no hotel Esplanada de São Paulo e reclamou publicamente no intervalo da sua estréia no Teatro Municipal de São Paulo. 

Dunham fazia parte da geração que lutaria com Martin Luther King contra o Apartheid dos Estados Unidos. Uma série de vitórias conquistadas duramente culminou com promulgação, em 1964 da lei dos Direitos Civis. O vice-presidente de Kennedy, Lyndon Johnson, então na presidência, promulgou a lei consciente que ela significava a perda do voto no partido democrata no sul - ele era senador pelo Texas. De fato, desde 1964 o Partido Democrata NUNCA teve a maioria do voto dos brancos numa eleição americana. 

O mesmo Lyndon Johnson, um pouco depois, criou a "Guerra Contra o Crime", uma série de medidas que apoiavam o policiamento ostensivo nos bairros mais pobres, habitados geralmente de negros e latinos, que ele chamava pântanos e criadouros de criminalidade. Entre 1964 e 1985 mais negros foram para prisão nos Estados Unidos do que entre 1884 e 1964. 

A eleição e reeleição de um negro para a presidência dos Estados Unidos mexeu no vespeiro do racismo que explica parte da ascensão de um candidato expressamente racista como Donald Trump à presidência logo em seguida. Seu slogan "America First" foi tirado de um grupo pró-nazista dos anos 40. No Brasil a vereadora negra Marielle Franco foi fuzilada junto com seu motorista no centro do Rio de Janeiro. Ela denunciava abusos de policiais e milicianos em favelas e comunidades cariocas. 



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