Requiem das Embaúbas
permissão para falar da fome
esse fantoche
de mal gosto a fome
já não existe
diz o senhor formado
e acende um cigarro lento
que morre ocioso
junto à cadeira giratória onde gravitam
cristais
rotinas
frutas de esmerilhada constância
sobre uma fonte azul
para que insistir nesse assunto velho
se já o naturalismo
e a revolução
as ratazanas já se sabe
já se disse
tudo e bem e muito
é demodé
melhor falar do amor
muito melhor
permissão para dizer que dá cólicas
que como a lepra a fome
se estende
em manifestações ambarinas
noite adentro
dia adentro a fome
polyeidés tornasolada variadíssima
mais além de sua espantosa corte
de vacas magras
filhos inflados
também falar da fome sem cólicas
a fome cinza do tempo
para pensar na fome
para dizer
a palavra fome
com sua boca aberta
e depois pensar:
de tempo
de livros de
crustáceos tingidos de fogo
e de flores sim
também de flores
e de espaço para enunciar seu colorido
desordem
de outra forma
Muitos milhares de formigas, milhares de milhões
enegrecem o tronco mirmecófilo, se redemoinham nos nós
passam febris pelas folhas imensas,
as poucas folhas imensas, astericos superlativos,
da embaúba. Densidade da madeira: 0.02.
Perfeita para se laminar, fatiar-se em lascas finíssimas
paralelepípedas, e, em comsequência,
rolam os seus troncos - nunca altos demais - ,
rolam
como se tivessem brotado para isso
e não para outra coisa.
Se lambuza de barro o pouco musgo que as cobre,
mutiladas já, tocos apenas, sem asteriscos, sem formigas,
chegam cilíndricas aos rios,
pois dali qualquer corrente as leva ao mar. E vão rodando
dessa vez sobre as águas, umas sobre as outras, justapostas,
escamas de um réptil imenso,
confundindo-se com madeiras mais nobres e duras,
na infusão orgânica do rio Amazonas, seus perfumes.
Então chegam
a um ponto onde há homens não necessariamente
musculosos, mas sim
reluzentes, e gruas, e calafrios de febre, como sempre.
Sobem os troncos
ao caminhão, sobem
ao barco, zarpam
e viajam rumo ao sul
até chegar em Santos e outros portos.
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