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Cinema: O Apartamento


Image resultDuas cenas para mim são memoráveis: a esposa/atriz coadjuvante da peça abre num só gesto a porta do apartamento arranjado às pressas e some de cena, a camera persiste na porta que vai se fechando sozinha lentamente, silenciosamente, sem bater - saberemos depois que quem subia as escadas não era o marido, mas sim um homem relacionado à antiga inquilina, homem que ataca violentamente a esposa no banheiro do apartamento. Outra cena sem diálogos ou atores me impressionou, a camera registra silenciosamente a partir do ponto de vista do protagonista que precisa abandonar rapidamente seu apartamento o trabalho indiferente de um guindaste que continua a cavocar a terra do lote ao lado do prédio, como se fosse um barulhento brinquedo de crianças, indiferente à evacuação das famílias ao lado.

Image resultO filme O Apartamento do diretor iraniano Asghar Farhadi é um filme sutil e a sua sutileza fica meio fenomenal no contexto de um audiovisual completamente dominado por filmes de Hollywood de personagens de Gibis americanos onde os protagonistas são os efeitos especiais e um mais monte de séries tremendistas que se transformam em monstrengos depois de dez episódios dançando o twist grotesco das viradas "surpreendentes" de enredo. 

O título em inglês - que parece ser o mesmo do Persa - enfatiza a relação com a peça A Morte do Caixeiro-Viajante de Arthur Miller, que é encenada pelos personagens "dentro" o filme - assistimos ensaios, cenas nos camarins e partes de performances. Seriam então duas tragédias da classe média [estadounidense nos anos 50 e iraninana no século xxi]? No cerne do drama o contraste entre seus desejos e suas sensibilidades e os limites concretos da vida social. O caixeiro de Arthur Miller oprimido pela incapacidade de sustentar o mesmo ritmo de trabalho pela idade e pelas dificuldades econômicas, o professor/ator de Farhadi apertado entre dois empregos e dificuldades diárias muito facilmente reconhecidas por brasileiros, por exemplo. Espremido entre o emprego na universidade e o teatro, o protagonista ainda precisa enfrentar como pode a violência e as ineficiências cruéis de quem não tem poder aquisitivo para ser VIP - a experiência diária da vida urbana das classes médias de todo o mundo a medida em que o espectro do empobrecimento se alarga com a concentração de renda absurda deste começo de século XX. Não vale a pena ir à polícia no caso de um crime violento muito menos apelar à justiça em caso de uma injustiça que força o casal a um despejo às pressas por causa de um possível desabamento. O título no Brasil, por sua vez, enfatiza a troca de apartamentos por causa de um abalo estrutural causado por uma obra no lote ao lado.


A violência é tratada com elipses mas é contundente. O filme se propõe a enfrentar coisas difíceis do ponto de vista da representação narrativa: como humanizar vítimas e algozes sem se perder em relativismo sentimental e reafirmar as platitudes sobre a humanidade de todos os seres humanos? Como revelar os efeitos corrosivos do patriarcado além dos trogloditas que batem no peito e se proclamam machistas? Como falar dessas coisas sem projetá-las para bem longe de nós mesmos como coisas de monstros desumanos que não tem nada a ver conosco? Em vista do estado de regressão mental em que a cultura do audiovisual se encontra, não é nada fácil encarar esses desafios. Encará-los significa falar uma língua francamente alienígena para os que contam a invenção de um super-herói mulher, ou de um  paladino da justiça gay, ou de um galã de novela negro como grandes avanços culturais. O risco: ficar como esse blogue, às moscas! 

Algo interessante sobre outro filme do mesmo diretor aqui.

Comments

Renata Lins said…
Adorei o texto, Paulo. Mostra bem algumas das coisas que me chamaram a atenção no filme. Mas não passou por mim, não fosse uma amiga com quem a gente tava falando como esse filme é maravilhoso me mostrar, não teria visto. O algoritmo do fb tá cada vez pior... bj!
Tá bravo aquilo lá! E aqui já é quase um subterrâneo da internet!
Não ficará às moscas nunca se eu não contar comi uma rs... vou procurar o filme. Concordo com o "estado de regressão mental do audiovisual", mas o estendo a outras áreas. Tenho uma teoria histórico-sociológica mais ou menos complexa sobre esse mundo que nos cerca nesse exato instante, mas ela não tem muito a ver com o assunto do seu post. Estou bem burrinha por agora (já faz alguns meses). Talvez por stress, talvez por recaída de depressão, não sei é aqui não é lugar pra dissertar até descobrir o porquê. Acontece que o tanto de pensamentos que esse texto me suscitou não encontra fluxo suficiente na minha escrita. Vou ficar pensando. Quando estiver mais mentalmente ativa, hei de retomar alguns pontos com vc. Não se surpreenda qdo acontecer rs... Tata.
Será sempre bem vinda, Tata!
Fiquei várias vezes pensando se assistia ao filme ou não, e acabei não assistindo. O trailer sugeria uma violência tipo beco sem saída. Fiquei com medo de sofrer demais ao assistir.

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