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Como parte de um projeto ainda inacabado sobre
a imaginação na América Latina, andei lendo e relendo atentamente o ensaio mais
famoso de Theotônio dos Santos, que morreu ontem. “A Estrutura da Dependência” foi
publicado num já longínquo 1970. Aviso que não o li esse ensaio como um economista
ou cientista social que busca refutar, confirmar ou aperfeiçoar as teses do
autor. Me aproximei do trabalho de Theotônio dos Santos pelo meu ponto de vista
peculiar que Alfonso Reyes chamava de janela quando dizia "cada uno mira el mundo desde su
ventana. La mia es la literatura". Minha atenção estava mais voltada,
portanto, para o uso e significado de termos como condicionamento e subordinação
e para a estrutura retórica do texto. Por favor, não se ofendam.
Acho interessante
a maneira como Theotônio dos Santos refutava em 1970 ideias que passaram a
dominar completamente o nosso horizonte cultural a partir dos anos 90. Afinal
ele centra sua crítica na ideia de que a nossa lentidão ou fracasso em adotar
padrões de eficiência é a causa principal do nosso subdesenvolvimento, a retórica
que constitui, cinquenta anos depois, a espinha dorsal dessa legião de “especialistas”
dos meios de comunicação e dos políticos que adotam justamente o discurso da
adoção de “padrões de eficiência” como a solução de todos os nossos problemas.
Outro ponto
muito interessante é a ideia de enxergar panoramicamente as nossas periódicas expansões
e contrações econômicas, o nosso pêndulo entre “milagres” [cada vez mais efêmeros]
e “décadas perdidas” [que às vezes duram vinte anos]. Vistos desde uma
perspectiva que abandona a análise semana a semana das variações de humor do
Todo Poderoso Sr. Mercado, essas idas e vindas seriam sempre condicionadas por
decisões tomadas pelo centro econômico do mundo, esse fantasma idealizado
[demonizado ou santificado] da nossa imaginação terceiro-mundista composto pela
Europa ocidental e pelos Estados Unidos. O que acontece nesses centros
determina o que acontece nas margens dependentes do sistema mundial. Pouco se
fala sobre ele, mas o processo decisivo no centro é presumido como sendo sempre
soberano e governado pelo interesse nacional, como se os capitalistas franceses
ou ingleses fossem verdadeiramente democráticos e estivessem de qualquer
maneira sujeitos a rígidos controles democráticos. O foco fica sempre nos
mecanismos dessa determinação nos países desprovidos de soberania, incapazes de
ditar seu próprio destino e dotados de elites capitalistas desinteressadas com
o destino nacional.
E, não
custa lembrar, os efeitos dessa sujeição vão além do econômico propriamente, já
que esse fluxo de expansões e contrações econômicas determinaria os limites da “capacidade
técnica e cultural, bem como a saúde moral e física” das sociedades e dos indivíduos
nos países dependentes. Raramente vamos encontrar a mesma consistência nesse
ponto de vista panorâmico que Theotonio dos Santos, mesmo porque ele nos faz
encarar um pressuposto profundamente incômodo, que vê o que acontece aqui como
mero reflexo do que acontece nos centros do sistema.
Do ponto de
vista retórico, as relações de poder costumam ser descritas em termos de
dominantes e dominados ou de soberanos e sujeitados a controles de fora. No
Brasil oscilamos, já um pouco ridiculamente, desde a nossa independência, com oposição
e situação se revezando como duas versões da mesma impotência, jogando o velho
jogo retórico entre Saquaremas e Luzias ao sabor das circunstâncias: atribuem seus fracassos (e os eventuais
sucessos do adversário) ao que acontece fora do país e atribuem seus sucessos (e os eventuais
fracassos do adversário) ao que fizeram enquanto “administravam” as condições
internas. Nada exemplifica melhor esse tipo peculiar de oscilação do que a história
que se conta sobre dois eventos recentes: o combate e eventual “vitória” contra
o “monstro da hiperinflação” e os “milagres” que nos visitaram feito uma
vertigem duas vezes e sumiram na poeira, um no final dos anos 60 e outro na
primeira década do século XXI. Poucos querem ver que a tal hiperinflação monstruosa
atingia também todos os nossos vizinhos sul-americanos e que todos esses países,
adotando arranjos políticos e administrações muito diferentes, “derrotaram o
monstro da hiperinflação” no fim das contas. Se adotamos, seguindo por um
momento que seja o exemplo de Theotonio dos Santos, um olhar panorâmico para a
nossa história dentro de um conjunto de outros países latino-americanos mais ou
menos de mesma envergadura [México e Argentina], vemos uma surpreendente
sintonia, não apenas de ciclos de expansão e contração, mas de oscilações entre
autoritarismos e períodos de relaxamento. Não se trata de uma repetição mecânica,
mas de sintonia fina, um fluxo sutil – a diferença de três ou cinco anos de um
país para o outro não é tão significativa quando tomamos uma certa distância
temporal e tomamos em conta duzentos anos de história.
Outro ponto
importante do texto de Theotonio dos Santos é a crítica [aparentemente
completamente esquecida] do desenvolvimentismo. Em sintonia com os anos do chamado
Milagre Econômico, “A Estrutura da Dependência” descreve a transição de um
sistema mais parecido com o colonial de uma “economia de exportação” para um
sistema de mais complexo e “combinado” de “dependência tecnológico-industrial”.
A mudança é marcada pela continuidade da condição subordinada com a perpetuação
de relações desiguais de poder no campo mundial – nesse jogo de chuta-bunda, eles
do Primeiro Mundo entram com o pé e nós do Terceiro entramos com o traseiro.
As palavras
que articulam todo o texto do começo ao fim rondam imagens de poder em estado
de desiquilíbrio: dependência, dominação, monopólio, controle, condicionamento,
sujeição, limitação, restrição, subordinação etc. E não falta uma profecia
final, sombria e sinistramente familiar: o desenvolvimento produzido pela
dependência é restrito [beneficia a poucos], inconstante [sujeito a crises constantes]
e progressivamente lesivo e o mundo que esse desenvolvimento cria é marcado por
“intensos confrontos políticos e militares” e “radicalização social” e aponta
para apenas duas possibilidades: o governo de força que leva ao fascismo ou o
governo popular que leva ao socialismo.
Cai o pano
e avançamos uns dez anos até um livrinho sobre a polêmica das Patrulhas
Ideológicas no final dos anos 70. O entrevistador, num tom bem típico daquela época,
pergunta a Oiticica quais as perspectivas para a implantação do socialismo no
Brasil. Oiticica responde na lata: “Socialismo no Brasil? Eu estou achando
quase impossível, o Brasil é um país bem fascista…” Cai o pano de novo, voa a
Nova República e sua Constituição cidadã e cá estamos, nadando de braçada no
impossível.
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