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De Balbúrdia em Balbúrdia II

         Há alguns meses atrás, lá pelas cinco horas da tarde, eu dava minha última aula de uma sexta-feira insuportavelmente quente num terceiro ano do Ensino Médio esvaziado por muitos alunos faltosos. Não havia sinal de que a paz  estivesse por um tris, mas estava. Sem aviso prévio, um barulho de conversa e música no corredor da escola interrompeu minha linha de raciocínio. Pedi licença aos que tentavam me escutar dentro da sala e abri a porta para dizer com a voz bem empostada: - ow! Isso aqui é uma escola, estou tentando dar aula e quero silêncio e respeito! O problema foi que quando comecei a falar, eu não tinha tomado consciência nem de quantos, nem de quais alunos estavam envolvidos naquela, digamos assim, balbúrdia. O enunciado ainda se  desenrolava da minha língua a medida que eu me dava conta de que era contra muitos que eu dizia o que dizia, que seus rostos estampavam uma certa vitória prévia e que, sim!, competíamos espaço e finalidade naquele exato instante.
     
     Para quê serve uma escola pública? A quem serve uma escola pública? Qual a utilidade do conteúdo de história no Ensino Médio de uma escola pública brasileira? Essas são perguntas clichês que direta ou indiretamente estão em todos os textos oficiais sobre a disciplina história (e se repetem com adaptações nos textos sobre as outras disciplinas). Dizem que clichês são clichês por algum motivo. A verdade é que as perguntas se repetem, mas as respostas são cabeça de bacalhau: alguém aí já viu?

         A maioria dos garotos e garotas que me ouviu esbravejar por silêncio e respeito naquela tarde continuou exatamente na mesma atividade de gritaria e dança em que estava envolvida. Poucos se deram ao trabalho sequer de gargalhar em deboche à minha fúria. Indignada e irracional, caminhando para o centro da confusão, repeti aos berros - Isso aqui é uma escola e eu quero silêncio e respeito para dar aula! Quando dei por mim, eu já estava atracada à uma ponta do cilindro de plástico que era a caixinha de som, disputando com um aluno que agarrava o objeto do lado oposto e puxava para junto de si. Percebi com mais apuro a cena ridícula em que me meti quando ouvi o garoto gritar -"Sua louca, quem você pensa que é? Você é professora! Só isso!"

         Por que eu escolhi ser "só" professora? Eu escolhi, e isso é um fato. Minha mãe não queria que eu tivesse a mesma profissão que ela, eu sempre soube que o salário era uma bela mixaria, eu sempre soube dos desrespeitos, das insalubridades, das noites em claro formulando e corrigindo provas, preenchendo documentos e fichas que ninguém lê. Então, por que? Por que eu quis isso para a minha vida? E além de ter escolhido ser professora, eu me pensava capaz de nunca repetir os estereótipos ruins com os quais tive a infelicidade de me deparar quando fui apenas aluna. Assim sendo, outra pergunta que não pude deixar de me fazer foi como cheguei aqui e como me tornei a pessoa que tentava arrancar das mãos de uma quase criança adulta seu provável maior e melhor presente do ano? De que forma aquela adolescente super tímida e retraída que um dia eu fui se transformou nessa performer louca que, num instante está encenando A Liberdade Guiando o Povo do Delacroix, sozinha diante dos alunos do terceiro ano, e no seguinte disputa aos berros a posse de uma caixa de som bluetooth com um garoto de 15 anos?

       A escolha da profissão que hoje exerço se deu de forma tão complexa quanto são complexos os problemas da educação brasileira. E, claro, ela está emaranhada na minha vida escolar e acadêmica, mas não só. Também estabelece laços profundos com a minha fé, com a minha personalidade, com o meu histórico familiar, com o meu locus social e com os méritos e com os problemas da educação brasileira. Para compreendê-la melhor, eu precisaria esticar essa linha, mas nunca vou conseguir desemaranhar o novelo. Apesar disso, é uma tentação constante: sou professora de história, gosto de tecer narrativas.

         É verdade que não determino meu agora pelo fracasso no primeiro vestibular que prestei. Sequer considero que aquele raspão na faculdade de arquitetura tenha sido um fracasso. Claro que, antes, nos momentos depressivos, eu não pensei assim. E, sim! Como 40% dos docentes brasileiros, eu já estive em quadros de depressão clínica, mas... Ora vejam! Isto foi antes de eu me tornar professora de educação básica. No entanto, voltando à linha de raciocínio, depois da terapia e dos remédios, e da maturidade, eu entendi que o resultado do meu primeiro vestibular foi um sucesso considerando a escola pública em que estudei. Não que ela fosse ruim - houve professores maravilhosos, outros nem tanto -, só que quando o processo seletivo das universidades era ainda o tal do vestibular, os aprovados eram quase exclusivamente aqueles que tinham em algum momento da vida sido adestrados por cursinhos específicos, para cursos específicos, em instituições específicas. Os cursinhos que mais aprovavam na UFMG e na UFV, por exemplo, eram os que utilizavam material didático produzido pela empresa de educação de certo deputado estadual. Coincidência? Não acredito em coincidências desse tamanho. Alunos dessas instituições certamente saberiam muito sobre o incidente histórico obscuro da Bahia dos Porcos no exato ano em que isso foi exigido na parte aberta do vestibular de arquitetura da UFV. Eu, por outro lado, como tantos outros, contava só comigo mesma e com a sorte. Minha história não é única em muitos aspectos, e é completamente exclusiva em tantos outros. Particularmente, é isso o que mais me maravilha nas histórias.
     

Continua...

Comments

Auto Retrato said…
Todo professor é grande eu seu ideal e pequeno no ideário capitalista. Opostamente cruzados esses dois polos, a ironia é: uma sociedade não sobrevive sem seus mestres de características diversas atendendo as demandas de seu tempo. Ser professor é professar ideais e quer saber?! Me orgulho disso. Parabéns!

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