40% dos 15 milhões de guatemaltecos falam muito pouco ou nada de espanhol. Quando confrontados em espanhol, os falantes de mam, uma das línguas mayas da Guatemala e do sul do México, tendem a responder com um tímido "sí". Duas dessas línguas (K'iche' e Q'anjob'al) estão entre as 25 línguas mais usadas nas cortes de imigração dos Estados Unidos. O português é a oitava delas.
Em 1954 a CIA inaugurou na Guatemala a promoção de uma série de golpes militares na América Latina. Como sempre a geopolítica intervencionista do Império tem uma superfície e um fundo. Na superfície a justificativa era a luta contra o comunismo internacional [como hoje é o terrorismo internacional]; no fundo a justificativa era [e é] a proteção e promoção dos interesses econômicos dos Estados Unidos.
No caso da Guatemala em 1954, os latifúndios da multinacional estadounidense United Fruit se sentiam ameaçados por uma possível reforma agrária no país. A partir daí a oposição nacionalista de esquerda fica confrontada com uma situação impossível: mesmo quando autorizada a concorrer a eleições, ela sabe que, mesmo se ganhar, não chega ao poder ou só chega ao poder se aceitar o papel de protetor doméstico dos interesses do império. Uma parte dessa oposição se organiza então em movimentos de guerrilha na Guatemala, numa longa e inconclusa guerra suja sem fronteiras e sem distinções entre combatentes e civis.
A partir dos anos 60, o exército da Guatemala começou a dar ao combate a essas guerrilhas um aspecto bem definido de puro e simples genocídio da população indígena falante de línguas maias. 83% das 200.000 vítimas da guerra suja na Guatemala são maias. Casas e plantações são queimadas e são promovidos estupros, fuzilamentos e sepulturas em massa, além de adoções forçadas de crianças.
Enquanto isso, o ditador Efraín Ríos Montt - condenado a 80 anos de prisão por crimes durante essa guerra suja - era recebido com honras de grande chefe de estado nos Estados Unidos e elogiado entusiasticamente pelo presidente Ronald Reagan por sua integridade e dedicação.
Hoje em dia a Guatemala figura entre os países que mais perdem cidadãos para outros países. São mais de um milhão de pessoas nascidas naquele país vivendo principalmente nos Estados Unidos. Desde 1990 a população de guatemaltecas cresceu 400% aqui e uma parte significativa dessa população de desterrados não fala espanhol, mas sim uma das línguas maias. Já vi as pessoas usarem a palavra dialeto para se referir a essas línguas. Não uso aqui essa palavra aqui porque não quero seguir aquela velha definição de que uma língua nada mais é que um dialeto provido de um exército. Com ou sem exército, essas línguas maias são espinha dorsais de culturas, de modos diferentes de estar e de ver o mundo.
Um exemplo: Em mam fala-se em xib'rikil (o susto), uma doença, hoje comum entre eles, causada por eventos violentos ou pela presença de uma alma penada de uma pessoa que morreu violentamente e não tem paz. Imagino que a possibilidade de entender em maia esse termo nos ajudaria a todos nesse planeta assustado a entender muito dos nossos sintomas.
As línguas se enriquecem e nos enriquecem no processo de tradução. Os tradutores falantes de mam pelejam, por exemplo, para traduzir a palavra asilo, termo chave na justiça de imigração nos Estados Unidos. Alguns desses tradutores optam pelo termo composto qlet tun ley (ser cuidado pela lei) ou então explicam o termo dizendo que asilo é
"Jun u'j tun tkleti tij qa xjal aj kyaj tun tkub' tb'yon ay bix qa tk'awati tu'x txuly tchmity" [um papel que salva/proteje você dos que ferem/prejudicam/tentam matar a você e a seus filhos e ao seu companheiro/a]
Quando conseguem entrar nos Estados Unidos, esses imigrantes vão formando pequenas comunidades espelho por aqui. Falantes de q’anjob’al de San Pedro Solomá se encontram todos em Indiantown na Flórida; falantes de mam de Tacaná vão em peso para Lynn em Massachusetts; quem fala jakalteco prefere morar em Jupiter na Flórida.
Essa reconstituição parcial das comunidades não é nada fácil. Em inglês, as crianças presas no sistema de controle migratório na fronteira são chamadas de "riders" [documento adicional anexado em folha de papel separado a um documento qualquer]. Transformadas em papel, elas e seus pais têm que preencher documentos em inglês com ajuda de um tradutor para um espanhol que elas mal conhecem. Esses documentos especificam, por exemplo, se eles necessitam de cuidados médicos especiais. Durante o governo Trump, o governo americano deportou pelo menos 800 pais sem os seus filhos; metade desses eram da Guatemala. Das seis crianças/riders separados das suas famílias que morreram sob custódia da imigração dos Estados Unidos, cinco delas eram indígenas de origem maia. Procurando um papel que os proteja, esses imigrantes são transformados em papel Se não sofriam com xib'rikil antes, os pais e os sobreviventes devem ter que conviver com ele agora. E acho difícil encontrarem qualquer tipo de cura por aqui. Em mam, quando se chega a qualquer lugar é de bom tom dizer: "estou aqui mas não estou aqui por mim. É por você." O gesto de gentileza adquire tons irônicos no caso desses imigrantes chegando aos Estados Unidos.
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