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Segunda versão

 Ciranda

 

 

A menina não se parece com ninguém. 

Anda sempre na ponta dos pés. 

Nenhuma é sua casa  

e para ela nunca nada chega  

na hora mais certa. 

 

Da mãe a menina aprende  

que o besouro que cai de costas  

não se levanta mais. 

Da mãe a menina aprende  

que há certas coisas  

que deitam raízes nos dedos 

à revelia de nós mesmos.  

 

Do pai resta um cheiro morno  

de livros, de fumo, de couro 

e o som um pouco gasto 

de um disco que corre esgotado  

e carrega uma música  

remota e, contudo, ainda nítida. 

 

A menina não se parece com ninguém. 

Anda sempre na ponta dos pés. 

Na casa nova são muitos os sorrisos  

cujo sentido ela não pode alcançar. 

Nos dias melhores no ar se respira  

indulgência e uma certa irritação 

(a perigosa fúria muda dos ódios pacientes). 

O cunho do dever 

rasga a máscara fina da afeição. 

Até seus próprios olhos severos  

examinam no espelho a imagem refletida 

como se fosse uma inimiga. 

 

A menina não se parece com ninguém. 

Anda sempre na ponta dos pés. 

Registra atenta o rosto devastado, 

pele macilenta cor de cera, 

e olheiras fundas que se cavam  

em torno dos olhos brilhantes 

(olhinhos de tubarão). 

Não lhe escapa as mãos descarnadas,  

dedos encarquilhados 

exibindo pedras  

escandalosamente falsas. 

Em quartos entulhados 

antigas mortas esquecidas de parir 

exalando o perfume morno dos velórios 

e o diabo trepado em cima do armário. 

Na escola hóstias recebidas com o coração vazio de fé. 

 

A menina tem olhos de quem já viu coisas terríveis. 

E se as coisas de longe 

se podem fantasiar como um sortilégio, 

na volta restam alegrias gangrenadas, 

a miséria porca que nasce da vaidade 

e uma matilha de crianças  

já interesseiras, calculistas,  

aprendendo rápido a arte de dissimilar. 

 

A menina que não se parece com ninguém 

e anda sempre na ponta dos pés cresceu. 

Com os mortos aprendeu 

a não saber distinguir o dia da noite. 

Com os mortos aprendeu 

a não nascer de novo todos os dias 

Quando nasce o sol. 

Com os mortos a menina  

aprende a se enrodilhar de feto 

e fazer da cama um ventre 

para dormir anos e anos. 

 

A menina que não se parece com ninguém 

e anda sempre na ponta dos pés  

aprende a ouvir e a recusar 

a esterilidade soprando  

nos ouvidos o pólen inútil 

das palavras inúteis  

do santo burguês enclausurado 

e a chama fanática  

dos olhos da égua bíblica, 

arrastando para a paixão ou para o ódio 

com o requinte jesuíta que prefere 

a tortura sem alarde, calculada e lenta. 

 

A menina que não se parece com ninguém 

e anda sempre na ponta dos pés aprende 

que tranquilidade e indiferença  

não são a mesma coisa. 

Estar vivo é a quietude  

sob a qual a vida palpita 

no rio fresco e no jardim abandonado. 

Não presta a paz estagnada  

acha que ninguém presta 

(se às vezes melhora, logo passa) 

e que não há passo bom nem passo ruim 

mas só um monótono tocar pra frente 

com as pernas curtas que Deus nos deu. 

 

A menina que não se parece com ninguém 

e anda sempre na ponta dos pés decide 

que melhor que morrer é ir embora. 

 

 

 

 

Comments

De pedra.
Gostei.

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