De uma forma bastante típica, escrevi mas esqueci de enviar esse conto para um concurso idiota que premiava a melhor história com uma televisão - quem sabe um dia não começarão a premiar diretores de televisão ou vencedoras de concurso de miss com livros? Passou o prazo, que fazer? Ah, esse conto que é 97.5% não-ficcional serve também como homenagem torta aos nossos muitos escritores que, neo-naturalistas em pleno século XXI, sonham em ser Rubem Fonseca ou pelo menos Patrícia Mello.
Quem bate esquece, mas quem apanha, não
"Já que a grande maioria
daria um livro por dia
sobre arte, honestidade e sacrifício."
Quando mataram meu sobrinho ele ainda não tinha 17 anos. Cinco tiros, o filho da puta deu nele. O policial que o encontrou já ia colocando na ocorrência que tinha sido briga de traficantes de drogas, só que o meu sobrinho morreu aqui perto e o pessoal na rua sabia quem ele era e chamou minha sobrinha que correu lá e não deixou. O pobre do menino ainda nem bebia cerveja direito. Ele vivia com a madrinha e ela sempre levou os meninos dela na rédea curta, mas com menino é mais difícil, ainda mais hoje em dia.
Meu sobrinho quis namorar uma moça lá na escola dele e ela tinha um ex-namorado que não queria ser ex. A menina até apareceu no velório, mas eu não falei com ela não. O rapaz era um pouquinho mais velho que o meu sobrinho, já era maior. Testemunha e tudo, dando nome e endereço do sujeito e ainda assim o rapaz ficou solto bem mais de um ano, até que matou um outro sujeito e dessa vez acabou que foi pego em flagrante. Eu fui reconhecer meu sobrinho, já saindo no rabecão do IML, tarde da noite. Só aí é que eu me convenci mesmo que ele estava morto.
Um mês depois que o meu sobrinho morreu a madrinha dele conversou comigo e eu fui na polícia falar com o investigador. O cara me mostrou uma pilha de pasta cheia de papel e me disse que era só ele e mais três para cuidar daquilo tudo. Ele me disse também que aquela semana todo mundo no distrito tinha sido deslocado para resolver o assassinato de um menino que estava voltando de um jogo de futebol. Porque o menino vinha de uma família boa, meio importante e tinha dado até capa no Estado de Minas, o escambau. Antes de me dispensar o investigador ainda me disse que eu estava fazendo a coisa certa, que eu tinha que ficar em cima, encher o saco mesmo. Senão não acontecia nada. Senão o caso do meu sobrinho acabava esquecido ali no meio daquele monte de papel que não parava de crescer.
Ele me deu o que eles já tinham juntado na pasta do meu sobrinho para eu ler. Um cara dirigiu um carro onde estava o filho da puta que matou meu sobrinho e esse cara disse que tinha sido forçado pelo filho da puta a rodar o bairro procurando meu sobrinho. O filho da puta pegou esse cara desprevenido num bar onde ele estava comendo um churrasco com uns amigos. O cara disse que depois ainda teve que levar o cara até em casa; o filho da puta vivia com a mãe dele.
Depois que ele foi preso eu dei um jeito de ir lá falar com ele. Eu queria saber porquê, ouvir qualquer coisa, uma explicação qualquer da boca dele. Quando a mãe do meu sobrinho morreu – ele era moleque ainda, tinha o quê, cinco, sete anos de idade – a minha cunhada foi lá na clínica falar com a médica para saber o que é que tinha acontecido. A mãe dele estava uma cólica forte e foi nessa médica, que receitou para ela uns remédios e uns dias depois a coitada amanhece morta, crispada no chão bem no meio do quarto dela. Gravidez de trompa, um negócio assim; deu hemorragia interna. A médica disse para minha cunhada que a mãe do meu sobrinho tinha garantido que não mantinha relações sexuais fazia tempo. A médica acreditou nela, mas não devia.
Essa minha cunhada, que depois morreu num acidente de carro vindo de Ouro Preto, me ensinou isso. Então eu fui falar com o rapaz na cadeia. Eu estava com medo. Não dele, mas do que ele ia dizer. Às vezes a gente escuta umas coisas ou fica sabendo de umas coisas que fazem muito mal para a gente mesmo, que a gente não consegue esquecer depois de jeito nenhum. Quem bate esquece, mas quem apanha, não. Isso foi a primeira coisa que o rapaz me disse. O resto não interessa. O resto eu esqueci.
Quem bate esquece, mas quem apanha, não
"Já que a grande maioria
daria um livro por dia
sobre arte, honestidade e sacrifício."
Quando mataram meu sobrinho ele ainda não tinha 17 anos. Cinco tiros, o filho da puta deu nele. O policial que o encontrou já ia colocando na ocorrência que tinha sido briga de traficantes de drogas, só que o meu sobrinho morreu aqui perto e o pessoal na rua sabia quem ele era e chamou minha sobrinha que correu lá e não deixou. O pobre do menino ainda nem bebia cerveja direito. Ele vivia com a madrinha e ela sempre levou os meninos dela na rédea curta, mas com menino é mais difícil, ainda mais hoje em dia.
Meu sobrinho quis namorar uma moça lá na escola dele e ela tinha um ex-namorado que não queria ser ex. A menina até apareceu no velório, mas eu não falei com ela não. O rapaz era um pouquinho mais velho que o meu sobrinho, já era maior. Testemunha e tudo, dando nome e endereço do sujeito e ainda assim o rapaz ficou solto bem mais de um ano, até que matou um outro sujeito e dessa vez acabou que foi pego em flagrante. Eu fui reconhecer meu sobrinho, já saindo no rabecão do IML, tarde da noite. Só aí é que eu me convenci mesmo que ele estava morto.
Um mês depois que o meu sobrinho morreu a madrinha dele conversou comigo e eu fui na polícia falar com o investigador. O cara me mostrou uma pilha de pasta cheia de papel e me disse que era só ele e mais três para cuidar daquilo tudo. Ele me disse também que aquela semana todo mundo no distrito tinha sido deslocado para resolver o assassinato de um menino que estava voltando de um jogo de futebol. Porque o menino vinha de uma família boa, meio importante e tinha dado até capa no Estado de Minas, o escambau. Antes de me dispensar o investigador ainda me disse que eu estava fazendo a coisa certa, que eu tinha que ficar em cima, encher o saco mesmo. Senão não acontecia nada. Senão o caso do meu sobrinho acabava esquecido ali no meio daquele monte de papel que não parava de crescer.
Ele me deu o que eles já tinham juntado na pasta do meu sobrinho para eu ler. Um cara dirigiu um carro onde estava o filho da puta que matou meu sobrinho e esse cara disse que tinha sido forçado pelo filho da puta a rodar o bairro procurando meu sobrinho. O filho da puta pegou esse cara desprevenido num bar onde ele estava comendo um churrasco com uns amigos. O cara disse que depois ainda teve que levar o cara até em casa; o filho da puta vivia com a mãe dele.
Depois que ele foi preso eu dei um jeito de ir lá falar com ele. Eu queria saber porquê, ouvir qualquer coisa, uma explicação qualquer da boca dele. Quando a mãe do meu sobrinho morreu – ele era moleque ainda, tinha o quê, cinco, sete anos de idade – a minha cunhada foi lá na clínica falar com a médica para saber o que é que tinha acontecido. A mãe dele estava uma cólica forte e foi nessa médica, que receitou para ela uns remédios e uns dias depois a coitada amanhece morta, crispada no chão bem no meio do quarto dela. Gravidez de trompa, um negócio assim; deu hemorragia interna. A médica disse para minha cunhada que a mãe do meu sobrinho tinha garantido que não mantinha relações sexuais fazia tempo. A médica acreditou nela, mas não devia.
Essa minha cunhada, que depois morreu num acidente de carro vindo de Ouro Preto, me ensinou isso. Então eu fui falar com o rapaz na cadeia. Eu estava com medo. Não dele, mas do que ele ia dizer. Às vezes a gente escuta umas coisas ou fica sabendo de umas coisas que fazem muito mal para a gente mesmo, que a gente não consegue esquecer depois de jeito nenhum. Quem bate esquece, mas quem apanha, não. Isso foi a primeira coisa que o rapaz me disse. O resto não interessa. O resto eu esqueci.
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