Skip to main content

“Só no Brasil...”

“Só no Brasil...”

Acho ridículo quando as pessoas acreditam no poder das palavras em alterar a realidade concreta. Recorro a um exemplo absurdo: crer que dizer coisas como “sou um sucesso” ou “tenho capacidade” dez ou quinze vezes em frente ao espelho do banheiro pela manhã pode transformar a vida de alguém. Um número surpreendente de pessoas ganha a vida vendendo esse tipo de enganação para uma legião de incautos que parecem querer acreditar nos poderes transcendentais da hipocrisia – coisas assim só reforçam a minha impressão de que a imbecilidade é mesmo uma epidemia de proporções assustadoras nos dias de hoje.
Apesar disso, acredito que combater certos hábitos lingüísticos que poderíamos chamar de maneirismos ou vícios de linguagem poderia servir justamente à nobre causa da higiene mental. É por isso que proponho aos meus inumeráveis leitores que evitemos terminantemente de hoje em diante a locução “só mesmo no Brasil” e qualquer de suas variantes (“só no Brasil”, “só aqui mesmo” e congêneres).
Primeiro porque essas locuções só servem para nos separar do resto do mundo. Acreditamos meio sem querer no nosso isolamento, como se vivêssemos em um universo paralelo e todos as nossas mazelas fossem só nossas e de mais ninguém. Em geral, obviamente, não são; e valeria a pena abrir os olhos para entender como é que outros povos lidam com esses problemas e como problemas que nos parecem entraves intransponíveis ao nosso progresso não travaram o progresso dos outros tanto assim.
Esse “só mesmo no Brasil” serve como o reverso da moeda do nosso ufanismo, nossa crença no nosso destino grandioso, único. Não somos como o país A ou B – onde supostamente todos vivem o paraíso sobre a terra – só porque nos falta esse pequeno e importante detalhe. Daí esse estado de exasperação permanente beirando o ataque de nervos em que o brasileiro supostamente pensante vive. A propósito: não proponho que devamos deixar de dizer “só no Brasil” para salvarmos nosso país de qualquer buraco real ou imaginário; muito antes pelo contrário. Minha proposta modesta trata de afirmar, não apenas que o buraco é mais embaixo, mais que os buracos devem ser muitos e que estão espalhados por todo o canto.
De qualquer maneira, ainda que nada mudasse, essas locuções repetidas assim exaustivamente todos os dias cansam e deixá-las de lado nos forçaria pelo menos a um exercício de criatividade verbal, saudável no deserto de idéias que habitamos hoje em dia.

Comments

Popular posts from this blog

Protestantes e evangélicos no Brasil

1.      O crescimento dos protestantes no Brasil é realmente impressionante, saindo de uma pequena minoria para quase um quarto da população em 30 anos: 1980: 6,6% 1991: 9% 2000: 15,4%, 26,2 milhões 2010: 22,2%, 42,3 milhões   Há mais evangélicos no Brasil do que nos Estados Unidos: são 22,37 milhões da população e mais ou menos a metade desses pertencem à mesma igreja.  Você sabe qual é? 2.      Costuma-se, por ignorância ou má vontade, a dar um destaque exagerado a Igreja Universal do Reino de Deus e ao seu líder, Edir Macedo. A IURD nunca representou mais que 15% dos evangélicos e menos de 10% dos protestantes como um todo. Além disso, a IURD diminuiu seu número de fiéis   nos últimos 10 anos de acordo com o censo do IBGE, ao contrário de outras denominações, que já eram bem maiores. 3.      Os jornalistas dos jornalões, acostumados com a rígida hierarquia inst...

Poema meu: Saudades da Aldeia desde New Haven

Todas as cartas de amor são Ridículas. Álvaro Campos O Tietê é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia, mas o Tietê não é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia porque não corre minha aldeia. Poucos sabem para onde vai e donde vem o ribeirão da minha aldeia, 
 que pertence a menos gente 
 mas nem por isso é mais livre ou menos sujo. O ribeirão da minha aldeia 
 foi sepultado num túmulo de pedra para não ferir os olhos nem molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia, mas, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, 
 a memória é o que há para além do riberão da minha aldeia e é a fortuna daqueles que a sabem encontrar. Não penso em mais nada na miséria desse inverno gelado estou agora de novo em pé sobre o ribeirão da minha aldeia.

Contos: "O engraçado arrependido" de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato conta em "O engraçado arrependido" a história trágica de um homem que não consegue se livrar do papel de palhaço da cidade, papel que interpretou com maestria durante 32 anos na sua cidade interiorana. Pontes é um artista, um gênio da comédia e por motives de espaço coloco aqui só o miolo da introdução em que o narrador descreve o ser humano como “o animal que ri” e descreve a arte do protagonista: "Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, e...