E aí a chuva engrossa e começa a cair um daqueles
temporais violentos de fim de ano: as nuvens baixas cor de chumbo vão
despejando um aguaceiro furioso em contraponto com o coro surdo dos trovões,
roncando num contínuo lento e abafado, como se os céus odiassem Belo Horizonte
e quisessem afogar e apagar do mapa a cidade de uma vez. E eu enfiado ali
dentro, sentindo o rio tomando corpo, inchando, subindo, o bafo quente e
líquido de tudo quanto é porcaria dos esgotos de Belo Horizonte se aproximando.
E eu sei que eu tenho que sair rápido, mas eu não consigo. Meu corpo dói
inteiro, o meu joelho parece uma bola de futebol, roxo – eu não consigo mais me
mexer e sair daqui.
A água não pára de
subir e do buraquinho já dá para ver uma massa espessa e escura que me sussurra
alguma coisa que soa como um lamento profundo e indiferente em duas vozes e que
vem com o hálito quente que se desprende dos redemoinhos que atravessam a
superfície da água e seguem em frente. O rio acorda. Levanta a cabeça da espuma
branca feito suor cavalo. O espelho d’água que era plano fica de repente
coalhado de lixo, de cacos, pedaços de casas, de mato, de sacos de plástico,
roupas, sapatos; uma mundo de coisas partidas e encharcadas de água que o rio
empurra, cutuca, sacode, embola e engole e vomita de novo em duas direções
simultâneas e em duas velocidades dissonantes – para frente, rápido e implacável;
para cima, lento e indolente.
Os meus olhos fixos no buraquinho vão se perdendo
naquele corpo turvo e inquieto do rio, até que eu me fecho lá dentro e descubro
que uma metamorfose se deu e agora eu sou o rio. Isso mesmo, companheiro: eu,
em algum momento exato daquele temporal, por mais improvável que isso possa lhe
parecer, me transformei no Rio Arrudas. Agora vejo cá de fora um homenzinho
triste e sozinho com o corpo alquebrado e frágil enfiado dentro de um
buraquinho imundo debaixo da ponte.
No ápice da tempestade eu desço rápido entre os dois
lados da avenida que me cerca – são duas paralelas duras me contendo, por
enquanto. Mais 5 minutos e eu me transbordo daqui. 5 minutos depois os dois
lados da Avenida dos Andradas são meus, minhas são as lojas, meus os cortiços,
os prostíbulos, os carros boiando e depois afundando em mim são todos meus.
Mais do que meus, eles todos agora são parte de mim contidos entre as minhas 2
margens em expansão. Agora eu sou infinito, e não há nada mais terrível do que
ser infinito, mesmo que só dure o tempo dessa primeira tempestade de verão.
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