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Doentes, olhando para fora, olhando para dentro

Vi ontem [passamos da meia-noite] muita gente no Brasil chamar, entre escárnio e pesar, a sociedade nos Estados Unidos de doente. Como essa doença é metafórica, tudo depende do que você quer chamar de doença. Se quisermos chamar um processo ideológico perverso de doença, tudo bem. Estamos todos doentes, então, no mundo inteiro. Sei que muita gente quer acreditar numa cultura doentia que aqui habita desde que os puritanos chegaram em Massachussets, como se a doença aqui fosse algo hereditário que se passasse intacto de geração a geração. Tudo bem, contando que você não queira acreditar numa doença atávica, um tipo de pecado original de Adão e Eva, herdado desde as priscas eras da Inglaterra Velha. Se você vai por aí, eu tomo outro rumo. O primeiro passo para entender uma doença é entender que os seus sintomas denunciam a sua presença, mas não podem ser confundidos com a doença propriamente.

Então se o massacre espetaculoso com mais de quinhentas vítimas entre mortos e feridos em Las Vegas ontem é um sintoma óbvio e ululante de uma sociedade doente, o que dizer do sintoma escandalosamente discreto que são os mais de 50.000 assassinados por ano no Brasil [números de 2015 e 2016]? O que dizer de mais ou menos três massacres de Las Vegas todos os dias do ano, perpetrados não por um único sujeito/mistério, mas por centenas de pessoas? O que dizer de mais assassinados no Brasil do que na guerra civil na Síria que choca [com razão] tanta gente? O que dizer da plácida indiferença daquelas mesmas pessoas horrorizadas [com razão] com a carnificina em Las Vegas quanto aos terríveis sintomas que atacam sua própria cultura, seu próprio país, diariamente? Por que são capazes de tanto espanto e indignação com os massacres alheios, sejam eles na Síria ou em Las Vegas, mas não enxergam sintomas de uma doença talvez pior em si mesmos?

As mesmas pessoas talvez se escandalizem [com razão, con certeza] com o número de presos nos Estados Unidos e talvez até com a desproporção de negros nessa população carcerária. Mas o que dizem eles sobre os 600.000 presos [39% sem julgamento] que se espremem num conjunto carcerário construído para um terço desse número? O que dizer sobre o fato de que eram 300.000 encarcerados em 2005 e já mais de 600.000 em 2015? Os vídeos de homens negros sendo atacados covardemente ou mesmo assassinados por policiais nos Estados Unidos horrorizam as pessoas, com razão, sem dúvida. E ainda mais o fato de que esses policiais acabam sendo absolvidos apesar dos filmes e fotos e gravações. Um escândalo a mais. Um sintoma a mais. Mas e os vídeos e fotos de homens negros massacrados pela polícia no Brasil? Por que geram tão pouca indignação? São sintomas de quê? É sintoma de que essa indiferença?

E o que dizer que uma certa faixa da sociedade brasileira que fica histérica por causa de uma criança que frente a um homem nu num museu mas que vê diariamente na mais plácida indiferença crianças abandonadas nas ruas, esfarrapadas, esfomeadas, trabalhando sem ir à escola, expostas a todos os perigos de uma cidade num país em que 50.000 pessoas são assassinadas por ano? Esse zelo desmesurado pela infância de uns e indiferença total pela infância de outros é sintoma de quê? O fato de que uma criança de, digamos, oito anos andar perambulando abandonada pela cidade, é sintoma de quê?

E o que dizer do silêncio sepulcral que se escuta em todos os cantos se alguém ousar alçar a voz e lembrar aos seus compatriotas que a pele da maioria desses encarcerados, desses assassinados e dessas crianças é quase sempre escura? Serão esses sintomas de que tipo de doença?

Outro dia um poeta hiperbólico escreveu uns versos bem hiperbólicos gritando no papel que os brasileiros eram os piores do mundo e que o Brasil era o pior dos piores. Confesso que me senti entediado frente à vontade de um escândalo literário no meio de tanta coisa escandalosa de vera no mundo. Esse hiperbolismo pessimista é uma megalomania ufanista ao contrário, parte de uma doença que um estudioso de literatura brasileira chamou de "Complexo de Mazombo" referindo-se a Gregório de Matos. Não somos especiais. Não somos mais especiais que outras culturas doentes. E paro por aqui, porque preciso trabalhar. Não me atrevo aqui a nomear nossas outras doenças. Não sou médico nem cientista estudando friamente a doença alheia. Sou também um paciente.

Hoje de manhã meu filho de 16 anos me perguntou porque o sujeito fez  que fez em Las Vegas - é uma pergunta mais urgente porque moramos nos EU - e eu disse a ele o seguinte: "meu filho, esses sujeitos fazem o que fazem porque podem, porque têm os recursos para tal". Não há nada de singular nas possíveis motivações psicológicas, ideológicas ou religiosas dele, mas sim no fato de que ele pode potencializar a sua vontade de destruição ao ponto de atingir mais de 500 pessoas indefesas porque ele tem acesso à compra e direito de carregar por aí várias armas em muito superiores às metralhadoras dos Gansters [que aliás foram banidas do uso civil nos anos 30].

Comments

Unknown said…
Muito bom, Paulo. No ponto!
Oi, Ju! Obrigado pela visita!
Alguns dias depois temos um louco botando fogo em crianças de quatro e três anos no Vale do Jequitinhonha e um menino de 14 atirando em colegas em Goiana. Uma aluna minha ganhou um tiro do namorado no peito, mas era uma arma 22 e só machucou. Isso é Brasil, isso é o mundo. Eu lembro da época em que você terminava as postagens com "subamos para os montes".
Realmente, Tata, o trem tá feio!

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