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Quatro versões do batido de Percepção, Cognição e Expressão que me atormenta hoje em dia

Joaquim Nabuco
I. "Há duas espécies de movimento em política: um, de que fazemos parte supondo estar parados, como o movimento da Terra que não sentimos; outro, o movimento que parte de nós mesmos. Na política são poucos os que têm consciência do primeiro, no entanto, esse é, talvez, o único que não é uma pura agitação".

Joaquim Nabuco

Que momento inspirado do Nabuco, mais pela conjunção sutil de imagens sobre movimento e ponto de vista em escalas diferentes do que por aquela velha obsessão que nos persegue desde as estepes, que é separar o joio [pura agitação] do trigo [movimento de vera]. A frase em si me faz pensar na diferença que Germain Bazin fazia no relacionamento das formas entre simetrias estáticas e coreografias móveis. A coreografia de palavras nesse Nabuco aí em cima tem a ver com a tentativa de entender [e expressar] com palavras um movimento duplo também eminentemente coreográfico: um movimento acontece continuamente e numa escala muito maior que a humana de difícil percepção e o outro movimento de forma intermitente e de forma facilmente perceptível.

A analogia permite que enxerguemos como nós nos sentimos parados estando em pleno movimento [um movimento que, afinal, tem que ser percebido abstratamente apesar da sua existência concreta], e como percebemos muito concretamente justamente aquele movimento que pode ser no fim das contas o mais inconsequente. Reconheço nesse Nabuco também um drama fundamental da vida moderna num regime liberal na sociedade de massas: de um lado o barulhento mas muitas vezes inócuo produto da nossa agência individual transformada em fetiche - a ideia, por exemplo, do consumidor como ativista. Do outro, o doloroso movimento das placas tectônicas do Capital que é fundamentalmente destrutivo e que segue indiferente aos memes e textos em caixa alta nas redes sociais ou aos discursos indignados de "analistas" de televisão e jornais. 

Ah, e não custa enfatizar a presença importante do "nós" no final da primeira frase - acho louvável esse gesto simples de trazer a primeira pessoa do plural para a prosa que se quer crítica, incluindo a nós leitores e a Nabuco autor no tal fenômeno que ele descreve com tanta sensibilidade. Faz todo o sentido até mesmo porque Nabuco está tratando justamente de perspectivas.


Ludwig Wittgenstein

II. "... o que se pode dizer pode ser dito claramente; e aquilo de que não se pode falar tem de ficar no silêncio."
Ludwig Wittgenstein

O trechinho é pedaço de uma frase que busca resumir num enunciado bem simples o sentido do livrinho de Wittgenstein chamado Tractatus Logico-Philosophicus. Numa versão mais recente em inglês o trecho ficou assim: "... what can be said at all can be said clearly, and what we cannot talk about we must pass over in silence." Numa versão mais antiga ficou assim: "What can be said at all can be said clearly; and whereof one cannot speak thereof one must be silent."
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O movimento da frase curta e lacônica é o giro em espiral que me parece bem barroco e é semelhante ao do trecho do Nabuco. Mas, aqui entre nós, pensando na versão em português e na versão mais recente em inglês: aquilo-pelo-que-a-gente-vai-ter-que-passar-em-silêncio não é bem aquilo-que-tem-que-ficar-no-silêncio - no miolo do "aquilo" em inglês estamos "nós", os leitores e o autor do livro [na versão mais antiga um impessoal "one" faz o papel de sujeito de qualquer maneira]. Vale lembrar que o livro foi escrito em alemão e, portanto, [já que esse blogue não põe o leite das crianças na mesa e eu tenho mil outras coisas para fazer], agora eu deveria mesmo é me ater ao silêncio... 



Eric Santner
III. “Freud pensava que mais do que a experiência da perda em si, o que o leva à traumatização é a falta do afeto apropriado - no caso, da ansiedade. Até que essa ansiedade seja recuperada e trabalhada, a perda continuará a representar um passado que se recusa a desaparecer.”
Eric Santner

No original em inglês temos: “It was Freud’s thought that the absence of appropriate affect – anxiety – rather than loss per se is what leads to traumatization. Until such anxiety has been recuperated and worked through, the loss will continue to represent a past that refuses to go away.”

A tradução que eu fiz me exigiu uma rearrumação da ordem dos termos em nome de não enfiar sujeitos onde sujeitos não existiam. Sim, porque dessa vez fui eu que fiquei doido para enfiar um sujeito na primeira pessoa do plural [aquele do Nabuco e do Wittgenstein em inglês] na minha tradução do trecho. Mas resisti e mudei a ordem das coisas justamente para manter minha versão na relativa sequidão puritana do original. Explico porque falo em "sequidão puritana": será possível pensar em algo mais terrível que ter que recuperar a ansiedade [esse afeto campeão na lista de torturas psicológicas contemporâneas, ali junto com seu outro lado da moeda, a depressão] ou então viver e reviver e reviver a perda como um fantasma que não larga do seu pé?

Durezas puritanas à parte, como não pensar nessa covardia em resgatar plenamente a ansiedade do trauma do autoritarismo como uma das causas do pastiche absurdo de 1964 que repetimos no Brasil em 2016? Gente na rua berrando contra o comunismo e pela moral e bons costumes no século XXI? Engravatados e togados repetindo mecanicamente que está tudo seguindo a normalidade constitucional enquanto uma pantomima ridícula sobre pedaladas derruba um governo, a UERJ é completamente aviltada, qualquer manifestação de rua termina em pancadaria grossa e gente com fardas de camuflagem e trabucos gigantescos levam reitores e ex-reitores para averiguações? E que não esqueçamos que essas averiguações dizem respeito a um memorial justamente daquele período autoritário que agora copiamos mal e porcamente.     


IV.
Autor do cartaz: Ñiko
Ano: 2007

Por último uma forma visual/textual de pensar e se comunicar que cada vez me fascina. A imagem ao lado é do ilustrador cubano Antonio Pérez González, mais conhecido como Ñiko. Ele fez esse poster para o Icograda World Design Congress de 2007, um encontro cujo tema era a diversidade cultural. Ao invés daqueles cartazes-celebração que afogam esse planeta afogado em carbono, merda e plástico, Ñiko citou um Aldous Huxley aparentemente inexistente - não encontrei a citação exatamente nesses termos em canto nenhum e suspeito que se ja porque ele tenha traduzido o Huxley de uma tradução espanhola de volta para o inglês. Um Huxley que afirma que “every individual is at once prisoner and heir of his culture” e nos devolve àquela torção barroca do Nabuco, do Wittgenstein e do Santner. 

A frase serve para comentar/complementar uma invenção prodigiosa: uma planta monstruosa que floresce  [ou usa como enxerto] justamente aquilo que a corta. Mas não seriam todas as nossas feridas também um buquê de flores dolorosamente abertas para o mundo? Só mesmo um latino americano para inventar/catalogar essa planta/cultura que é vítima e algoz de si mesma, que carrega em si a cicatriz aberta e o instrumento de suplício, que cria e poda violentamente essa tal diversidade que todo o mundo finge celebrar nos anúncios da Nike e da Apple, mas que incomoda muito profundamente a tanta gente. Essa diversidade corporativa do século XXI traz como bandeira nos Estados Unidos o acesso de todos ao direito de se casar em santo matrimônio e constituir família e de servir a pátria no glorioso exército. Mas tanto esforço normalizador/corporativo/consumidor não esconde o poder perturbador da presença do outro aqui bem no meio, no miolo da identidade de todos nós.




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