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Considerações irresponsáveis de uma Renata qualquer sobre Só Garotos da Patti Smith

 Só Garotos, da Patti Smith, era o que eu estava lendo antes do isolamento social começar. Minha amiga de apê trabalha como recepcionista numa unidade de saúde e, assim que a pandemia se oficializou, ela virou secretária especial da médica que atenderia somente os casos suspeitos de covid-19. Por esse e por outros motivos eu tive que arranjar um carro, fazer as malas com pressa e vir correndo para a cidade onde minha mãe está morando: se não, além de ter que lidar com meus próprios quadros de risco aumentados, não poderia visitar a mãe até que saísse uma vacina. Aí, na pressa e na falta de vontade de continuar lendo, eu acabei deixando o livro para trás. 


Há poucos dias, eu estava zapeando pelo Instagram e vi uma bonita foto da Patti Smith com a máscara - assessório tendência - pendendo do bolso da calça preta. Não lembro se foi a revista New Yorker que postou, mas deve ter sido. A foto teve impacto em mim, sei lá por quê, e estou desde então matutando com meus botões o motivo de eu não ter tomado gosto pela leitura de Só Garotos, afinal, foram tantas resenhas positivas que vi por aí. E eu amei O Som da Revolução do Rodrigo Merheb, achei a autobiografia de Rita Lee bonitinha, então por que cargas d'água senti quase antipatia por Só Garotos? Talvez o excesso de resenhas positivas seja um dos motivos.

 Acho que existem artistas cujas maiores expressões são justamente suas posturas físicas, as roupas que usam, as causas que advogam  publicamente, etc., e a Patti Smith está entre eles. É como se esse tipo de artista se voltasse para fora e se fizesse por fora também. Eles não povoam apenas  o cenário da música popular, mas principalmente. Já li alguma coisa de história da cultura popular, alguma coisa bem recente, talvez um artigo, que dissertava sobre isso e ligava o fenômeno ao surgimento e à popularização dos aparelhos televisores*. Acredito particularmente que desde o nascimento do rock isso vem se intensificando, mas o auge até agora alcançado está sem dúvida no nicho pop, sendo Beyoncé e Lady Gaga os pontos mais notáveis fora do Brasil (?)**, mas basicamente e em todos os estilos o cenário musical brasileiro atual é essencialmente mais visual que musical.

Tendo a me identificar mais com a expressões que se originam de, e também abordam, questões abstratas e introspectivas. Gosto mais dos artistas, inclusive das histórias, que se fazem por dentro e para dentro. Daí vem minha falta de prazer com a leitura de Só Garotos? 

O ser Patti Smith é na verdade a grande obra da artista Patti Smith. Fico, então, matutando que esse tipo de artista que é, em constituição física, sua própria arte, contraditoriamente se revela muito pouco. É como se sua imagem fosse calculada da mesma forma que se calcula um look antes de demonstra-lo na passarela. E, uma vez montado o personagem, ele servirá de carapaça protetora de um eu intocável e inacessível sempre que ele se colocar diante das câmeras, do público, quiçá do espelho. Esse artista é tão humano que eu quase não vejo humanidade nele.

As partes do Só Garotos em que a Patti Smith narra sentimentos vividos enquanto assistia as notícias na TV, na companhia do pai, momentos da infância e de descoberta da linguagem - como quando ela fala do cisne e de como é surpreendente que uma palavra tão pequena carregue tamanha beleza - foram os poucos trechos do livro que me tocaram de alguma forma. As idas e vindas em ambientes sujos, quartos de hotel, a presença em shows históricos e a convivência com pessoas notórias me interessaram quase nada.

Convenhamos que a musicalidade da cantora em questão não é grande coisa, já a poesia deve ter lá seus méritos. Mas não acho que isso ou aquilo tornem-na uma artista menor que o Caetano ou a Alanis, por exemplo, que eu gosto tanto. É só que a postura, as roupas, os  discursos políticos pra lá de objetivos não acessam o meu tipo específico de sensibilidade e inteligência. Pra mim, toda a produção da Patti Smith soa muito básica, fácil, até infantil, mas eu não sou capaz de realizar o que ela realiza.  De tudo por tudo, ter lido parte do livro me serviu para refletir sobre meu gosto artístico e literário: gosto de gente que sente e que expõe o que sente, acompanhando isso de malabarismos estéticos ou não, engajando isso em questões sociais ou não. Gosto que o protagonismo seja o que de divino há no humano e, aí, faz sentido que já tenham me chamado de mística (risos meus, discretos). 

A edição que eu comprei é lindinha, da TAG Literária. Só Garotos será um enfeite valioso para minha estante. Não lembro se ganhei como mimo de assinante ou se incluí o Devoção em algum pedido extra, só que ainda não li nem a orelha. Tenho a impressão de que o desgosto será igual, com o agravante de que a edição (também da TAG) não tem nada de especial.

Tô pensando aqui numa entrevista que a Ângela Ro Ro concedeu para a Marília Gabriela, faz algum tempo. Ela falava sobre seus momentos sombrios de alcoolismo e vício em drogas e dizia que o meio e a mídia não só se deliciavam com a condenação que faziam de seu comportamento, como incentivavam seu comportamento: era como se houvesse necessidade de ter alguém a quem condenar. Ela dizia também que o artista é o bobo da corte ou o gladiador, ainda, e que o público existe para vê-lo se dar mal. Sei lá, acho que pensando o Só Garotos como uma sequencia de episódios, a narrativa oferece esse tipo de espetáculo várias e várias vezes em forma de gravidez indesejada, seguida de trauma psicológico, condenação social, miséria, fome, doença venérea e até um pouco de insanidade. Penso que artistas que se fazem por fora e para fora se dão muito bem no contexto descrito pela Ângela Ro Ro, e que o alimentam, e o fortalecem. Por outro lado e infelizmente, artistas que se fazem por dentro e para dentro costumam sucumbir. 

Há muito tempo, eu estive pessoalmente com uma escritora conterrânea minha. Ela havia acabado de lançar um livro que estruturalmente era uma obra prima, mas ao mesmo tempo era nulo e perfeitamente vazio de conteúdo. Sou grata por essa pessoa ter me propiciado uma das melhores semanas da minha vida, contudo, no tempo em que estivemos juntas, reconheci naquele ser humano a vontade imensa de construir para si uma existência trágica, como se  isso é que fosse torná-la de fato uma escritora. Pode ser que seja exatamente essa a postura diante da arte e da vida que eu encontrei e rejeitei em Só Garotos. 

Em tempo, admito que caso euzinha aqui fosse seguir uma carreira artística, eu seria do tipo que sucumbe e morre. Muito por isso desisti da música (mais risos meus, muitos! Mas são risos sérios).


*Não lembro o autor e essa postagem não tem pretensões acadêmicas.

**Eu estou tão alheia ao cenário pop internacional de agora que posso ter cometido um grande engano. Talvez tivesse sido melhor citar as Boy Bands da década de 90 como exemplo. Fiquem a vontade para discordar de mim nos comentários.

Aviso: a autora desse textinho está o tempo todo revisando e alterando coisas nele. 

Não responsabilizem o Paulo pelas opiniões expostas acima. A autora dessa postagem é uma intrusa colaboradora do presente blog e o nome dela é Renata. Portanto, culpem a Renata.

Comments

Eu também confesso a minha preguiça crescente com o mito romântico do artista enquanto roqueiro. Cada vez gosto menos, porque também percebo essa necessidade de pose. Estamos todos posando o tempo todo? Será possível? Acho que cada pose, por mais milimetricamente coreografada, acaba comunicando outras coisas que não estavam planejadas no pacote. No caso de Patti Smith, seria a vaidade?
Anonymous said…
Não sei se é vaidade, Paulo. Embora a vaidade sempre seja uma questão presente na vida de quem quer que seja, ainda mais se quem quer que seja se coloca diante de uma multidão em cima de um palco. Mas eu tendo a pensar que exista um entendimento específico do que seja "arte" (num sentido bem pop) envolvido. Tem uma parte do livro em que ela narra um show do Doors em que esteve, e diz que vendo as poses, caras e bocas do Jim Morrison pensou: "eu também posso fazer isso". Como eu expliquei, não terminei o livro, mas o trecho dá a entender que foi ali que ela definiu para si o que faria da vida. O interessante é que o Jim Morrison é parte de uma geração que glorificava a música e construiu um estilo de vida e uma estética visual em torno dela. Tudo bem que ele já era um início de desvio dessa ordem dos fatos, mas a Patti Smith citar a performance do Jim Morrison como algo que ela era capaz de fazer ao invés de um argumento musical soa como a indicação de um novo entendimento do que seja aquilo tudo. Acho que estou me embolando, mas o que me deixa instigada mesmo, é a percepção da Angela Ro Ro de que o Show Bizz é o Coliseu e os artistas os gladiadores. Se é assim, as palavras de ordem dos artistas são inócuas. Todo o discurso em defesa dos animais da Patti Smith, por exemplo, é chover no molhado porque o que o mundo quer ver é ela pagar de doida e se acabar na "loucura". E quem saca isso consegue viver oferecendo o que o público quer sem chegar ao ato final que é, em última instância, a morte factual ou midiática. A Patti Smith sacou? Bem, ela ainda está posando nas revistas com máscaras pendendo do bolso. Sei lá, existiu um tipo de artista pop que ingenuamente viveu essa tragédia, e outro que a encenou e está até hoje. Como público que sou, percebendo a cena, eu me sinto enganada e me afasto. Mas talvez eu não seja só público e me afaste também por ser a personalidade ingênua que se entregaria de corpo e alma ao espetáculo caso chegasse a entrar no Coliseu. rsrs...
Anonymous said…
No final das contas, não estou refletindo sobre a produção da Patti Smith ou de qualquer outro músico pop, mas sim sobre o público e sua percepção. Eu acho. Ou era tudo pra dizer irresponsavelmente que não gostei de um livro que todo mundo que eu conheço diz que é o máximo rs...

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