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Alguns esclarecimentos sobre o sistema eleitoral americano:

Já que virou moda acompanhar a eleição americana passo a passo roendo as unhas, faço alguns lembretes para o "torcedor" brasileiro:

1. Cada candidato nos EUA disputa em um distrito. Ali ou ele ganha ou perde. Em outras palavras: perder com 49.99% dos votos ou com 1% dos votos dá na mesma. Cinco bilhões de votos não valem nada se seu oponente conseguir 5.000.000.001.

2. Esse sistema de "tudo ou nada" cria um ilusão de ótica simplificadora, com estados azuis e estados vermelhos, como se republicanos fossem uma minoria ínfima na Califórnia [são quase 4 milhões de votos para Trump] e democratas na Louisiana fossem ETs [mais ou menos 4 em cada dez eleitores votaram em Biden]. Podem conferir: o candidato a presidente derrotado teve pelo menos um terço do eleitorado no tal estado onde ele supostamente perdeu de lambada.

3. Quando você mora num estado [ou num distrito] em que seus adversários têm ganhado sempre com uma margem, digamos, de uns 10%, o sistema do "tudo ou nada" causa um certo sentimento de que o seu voto é um exercício fútil. Não é difícil imaginar que um eleitor democrata de Montana fique com preguiça de ir votar no Biden, sabendo que ele não tem a menor chance de ganhar nem sequer um votinho por lá. 

4. Aliás esse é outro ponto que os brasileiros tendem a esquecer: o voto nos EUA não é obrigatório, então ficar em casa é sempre uma opção que causa pesadelos nas campanhas. Um candidato precisa entusiasmar a sua base, para começo de conversa.

5. Sob esse aspecto a tal polarização que muitos lamentam com uma conversa meio vaga de "vamos dar as mãos e esquecer nossas diferenças" teve o efeito de revitalizar a participação nas eleições nos EUA, com números incríveis de aumento de votantes. Agora como é que um sujeito que quer ir ao supermercado com a sua bazuca pessoal e alguém que tem horror a armas de fogo em geral vão dar as mãos... perguntem ao Biden.

6. As campanhas arrecadam toneladas e toneladas de dinheiro e despejam quase todo esse dinheiro nos estados em que eles acham possível [mas não garantido] ganhar. Assim, enquanto a vida segue mais ou menos pacatamente em grande parte do país, eleitores de lugares como Ohio ou Flórida são mais perseguidos do que os Beatles naqueles filminhos mequetrefes da fase terninho deles.

7. Isso também acaba dando uma importância desmedida a esse estados que podem dar republicano ou democrata com maioria. Mas isso é no nível de presidente. As outras eleições - inclusive as municipais - são ainda mais complexas. O esquema seria mais ou menos gerais esse: cidade grande=muitas minorias e força democrata e cidade pequena [inclusive subúrbios]=branquitude e força republicana. 

8. No nível micro as coisas se embolam muito mais, principalmente quando se trata de agrupamentos meio artificiais como os "latinos". Um suposto grupo étnico que junta no mesmo balaio Olavo de Carvalho e o proletariado mexicano tende mesmo a ser "imprevisível".

9. Quando a gente entra no nível micro as coisas vão ficando mais complexas. Miami é composta de três distritos: Miami-Dade, Broward e Palm Beach. Nos três a maior comunidade latina é de origem cubana. Nos três Biden ganhou. Então os cubanos são todos fanáticos anti-Castro que amam Trump? Não parece.

10. A cobertura da imprensa cria uma série dessas impressões toscas: o eleitor republicano é membro da KKK armado até os dentes e o democrata é um moderninho urbano descolado. A coisa é muito mais complicada porque os dois partidos são dois tremendos MDBs, juntando sob o mesma coberta gente completamente diferente. 

11. As pessoas que vivem em lugares muito afetados pela desindustrialização e o seu consequentemente empobrecimento ficam furiosas com a falta de atenção aos seus problemas [e o sistema distrital tende a forçar essa atenção reforçada no estritamente local]. Os que viram casaca o fazem, geralmente por isso. 

12. A viração de casaca acontece desde que o outro partido se interesse em ir lá vender o seu peixe, o que nem sempre acontece. O que está acontecendo este no Texas, na Geórgia, na Virgínia e na Carolina do Norte [independente do resultado final] é fruto de anos de trabalho duro de militantes democratas que muitas vezes não contam com muito apoio dos diretórios nacionais e seus grandes estratagemas [e trambiques]. E de mudanças demográficas como o aumento nesses lugares da população urbana, menos religiosa, mais misturada. E de uma comunidade negra determinada a lutar para ser ouvida nos processos políticos.

 

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