O Alabama é um dos cinco estados financeiramente mais pobres dos Estados Unidos. Uma das partes mais pobres do estado é o chamado cinturão negro [Black Belt], onde antes se cultivava algodão com mão de obra escrava e com meeiros miseráveis e onde agora ainda se cultiva algodão com muitas máquinas e trabalhadores sazonais. Emprego naquele meio rural é uma raridade.
80% dos habitantes do cinturão negro no Alabama não tem esgoto - o nível nacional nos meios rurais é de 20%. O estado simplesmente exige que eles "invistam" em sistema de fossa sépticas - uma bagatela de 20.000 dólares, mais do que a renda anual da maioria das pessoas ali. Não possuir uma fossa funcional expõe o morador a multas sucessivas de 500 dólares cada, despejo e até prisão. E não se brinca com isso: eu mesmo já experimentei na carne o que é viver num estado republicano que "incentiva a responsabilidade individual" - esqueci de pagar uma multa do meu carro e fui surpreendido com a notícia de que havia uma mandado de prisão contra a minha humilde pessoa; fui correndo [de carona] até a corte morrer em 180 pilas.
Falei em pobreza material. O Alabama é também um estado com uma das mais incríveis histórias de ativismo: Rosa Parks, Martin Luther King, John Lewis. Ali também viveu Pamela Rush, que em 2018 viajou até Washington para dar seu depoimento em frente a um painel de senadores.
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Pamela Rush vivia mais especificamente no município de Lowndes [10.000 habitantes; 7.000 deles negros], onde os pobres [todos negros] são forçados a viver literalmente na merda. A reação da responsável pelo saneamento básico no Alabama [uma mulher negra] mostra que eles vivem na merda metafórica também: "Se a pessoa tem esgoto no solo é culpa dela por jogar esgoto no seu terreno. Eu cresci pobre, mas nós tínhamos dignidade. Nós éramos limpos." Afogando-se em esgoto, eles ainda por cima lidam com as consequências sem qualquer tipo de serviço de saúde pública - o governador do Alabama recusou-se a expandir a 200.000 cidadãos do Alabama o programa Medicaid [pago quase na sua totalidade com recursos federais].
Pessoas como Pamela Rush, com a ajuda de ativistas também do sul, tiveram a coragem de revelar sua própria miséria [não é fácil numa cultura que santifica o orgulho admitir publicamente que vive na merda e não tem como sair dela sozinho] e assim deram visibilidade ao problema. A pobreza segregada torna-se invisível e mesmo inimaginável para quem vive num outro planeta ainda que esteja ali ao lado, enchendo o peito para falar de responsabilidade e liberdade individual enquanto seus vizinhos se afundam em doenças e miséria.
A chegada da pandemia complicou e esclareceu as coisas: 90% dos pacientes internados com Covid-19 em Lowndes são pobres e pretos. Enquanto governos municipais e estaduais relutavam em tomar medidas como a obrigatoriedade de máscaras e distanciamento em lugares públicos em nome da tal "liberdade individual" estipula-se que de cada 3 vítimas da pandemia no Alabama, 2 são negros. Pamela Rush morreu de Covid-19 sem poder aproveitar o fruto da sua coragem e sua luta: pouco depois de conseguir instalar uma fossa séptica e ganhar um trailer novo com doações que a sua "fama" garantiu.
Não me esqueço do dia em que trabalhei como apresentador/tradutor num festival de cinema ambiental onde se mostrava o filme "Lixo Extraordinário", onde estava presente Tião, um dos protagonistas do filme. Uma mulher com a voz trêmula de emoção perguntou ao Tião como ela poderia ajudá-los. Traduzi a resposta dele e depois me permiti a completar, dizendo que todos os dias [e noites] vejo muitas pessoas vivendo em New Haven [onde metade da população estava abaixo da linha da pobreza] da reciclagem obrigadas a levar suas latinhas aos supermercados da cidade - porque não ajudá-los também? O silêncio e o mal-estar são familiares. Os papéis estão firmemente definidos no sentido de identidade das pessoas: países ricos "ajudando" países pobres como se não houvessem pobres e ricos nos dois.
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