Normalmente pensamos que o passado pode iluminar questões importantes do presente, mas o que aconteceu no Brasil em 2016 iluminou para mim o que aconteceu em 1964 e certas operações cosméticas que foram feitas a partir do fim da ditadura com as manifestações pedindo eleições diretas para presidente. Percebi como foi amplo o apoio ao golpe militar de 1964, como para cada crônica crítica de Carlos Heitor Cony havia dezenas de notas e colunas mais ou menos explicitamente apoiando o fim da "confusão" do governo Goulart, desde manchetes e editoriais de primeira página francamente indecentes até muxoxos e indiretas em cartas privadas de modernistas famosos.
Um golpe, militar e/ou parlamentar, se constrói primeiro assim, na opinião pública, de forma metódica. O da Dilma foi sendo construído desde o começo do governo Lula, até que uma situação econômica desfavorável fornecesse o combustível necessária para a arrancada final: a farsa sexista, tão bem resumida no voto impotente e indignado do Jean Wyllys [alguém que nada tinha de envolvimento direto com os governos petistas, diga-se de passagem].
Percebo agora a maneira como o amplo apoio ao governo Bolsonaro se dissolve e penso no que aconteceu com o regime de 1964. Houve gente do campo conservador como o próprio Cony e mais ainda como Tristão de Athayde, que saltou da barca quando o golpe era uma "revolução triunfante", quando a economia tinha sido "consertada" e crescia com vigor, quando o "Brasil do Tri" se ufanava que aquele, sim, era um país que ia para a frente. Saltaram da barca porque tomaram partido contra as ameaças para intimidação, as prisões arbitrárias, a tortura, os assassinatos, a censura, a falta de liberdade de opinião e todo esse lamaçal da ditadura também afogava o país. Depois, muito depois, quando chegaram ao radar de todos [a realidade vai batendo à porta cada vez mais forte] a hiperinflação, a dívida externa insustentável, a estagnação da economia e a corrupção. Quando a gente ia lendo sobre as manifestações e os escândalos chegando às primeiras páginas de JB, Globo, Folha e Estadão, meu pai sempre me alertava [eu era bem jovenzinho]: não se deixe enganar por que todos esses quatro são profundamente reacionários e apoiaram o golpe e a ditadura.
Tudo aquilo que meu pai me falava estava invisível nos jornais, nos discursos e até nos livros de história. Não era hora de se dividir e ficar apontando o dedo, pois todo o apoio era muito bem vindo. Tratava-se de finalmente por fim a um regime que já tinha mais de vinte anos de idade. E continuou invisível quando Sarney [um típico filhote da ditadura] chegou ao poder num golpe institucional até hoje invisível para muitos - ele era vice de um sujeito que morreu antes de tomar posse como presidente. E era ainda mais invisível quando Collor [outro filhote da ditadura] ganhou nas costas dos quatro jornalões e das televisões - indícios da corrupção mafiosa que levou ao impeachment já eram do conhecimento de todos, mas os jornais escondiam essas notícias lá na página 8 enquanto davam primeira página a lorotas absurdas a respeito de Lula e do PT.
Foi assim com Collor [que subiu e caiu em pouco mais de dois anos] e vai sendo assim com esse desastre óbvio que é Bolsonaro [um desastre que começa em 2016 e deveria ter dois nomes: Temer/Bolsonaro]. Por isso a raiva de figuras como Pedro Bial - quase porta-voz da família Marinho - com o filme de Petra Costa. Quando o apodrecimento apontar para o colapso completo, não se espante de ver mais da metade das pessoas que tornaram Bolsonaro possível a partir daquela farsa de 2016 como renovados guerreiros pela democracia.
Faz parte de certos padrões políticos do Brasil que datam da independência. Mas isso é assunto para outro dia.
Comments
Dois dias atrás, uma deputada estadual de SP deu entrevista para o Congresso em Foco (dizendo que ela seria uma ótima presidente). Achei curioso dessa entrevista ela dar indícios sobre o arrependimento dela em ter apoiado o Excrementíssimo Senhor Presidente da República após perceber como ele era raivoso, grotesco, etc. (características dele que ninguém nunca tinha percebido antes, obviamente)