Skip to main content

Algumas notas sobre Viagem pelo Brasil de Von Matius e Spix

 Acabei de ler o primeiro dos três volumes do Viagem pelo Brasil de Von Martius e Spix e deixo aqui alguns apontamentos:

1. A música popular no Brasil [na época as modinhas, com voz e violão] não mudou em nada os seu temas:  

Amor desprezado, tormentos do ciúme, dores da despedida, são os assuntos da sua musa, e a referência, cheia de fantasia, à natureza dá a esses desafogos da alma uma trama genuína, tranqüila, que ao europeu parece tanto mais adorável e verdadeira, quanto mais ele mesmo se sentir num enlevo idílico, pela riqueza e o gozo pacífico, proporcionados pela natureza que o cerca.

A descrição acima serve bem para a última sensação do tiktok, aliás não passa de uma ligeira modernização de canção popularizada por Ronnie Von na Jovem Guarda:


Também vem de longe o gosto brasileiro pelas "dancinhas" - e adianto que não compartilho do moralismo mal-humorado dos dois alemães:

O batuque é dançado por um bailarino só e uma bailarina, os quais, dando estalidos com os dedos e com movimentos dissolutos e pantomimas desenfreadas, ora se aproximam ora se afastam um do outro. O principal encanto desta dança, para os brasileiros, está nas rotações e contorções artificiais da bacia, nas quais quase alcançam os faquires das Índias Orientais. Dura às vezes, aos monótonos acordes da viola, várias horas sem interrupção, ou alternado só por cantigas improvisadas e modinhas nacionais, cujo tema corresponde à sua grosseria. Às vezes aparecem também bailarinos, vestidos de mulher. Apesar da feição obscena desta dança, é espalhada em todo o Brasil e por toda parte   a preferida da classe inferior do povo, que dela n o se priva, nem por proibição da Igreja.


2. Em Entradas e Bandeiras de Sérgio Buarque de Holanda ele faça sobre as duas culturas culinárias que dividem o Brasil bem pelo meio de Minas Gerais. Mas a narração de VM & S falam sobre a região de São Paulo/Paraná (na época São Paulo apenas, Curitiba se chamava Paranaguá) são adeptos do milho e da carne de boi, porque a pecuária era muito comum na província. Acho que a questão é: quem não tem dinheiro come porco, galinha e tatu com milho e farinhas e quem tem dinheiro come carne de vaca. E o milho aqui é canjiquinha de milho cozida com água ou leite com açúcar. O problema com a mandioca é de solo e clima:

"A mandioca não dá muito bem e apodrece facilmente nos solos pesados, barrentos e mais frios das baixadas cobertas de mato; o milho, pelo contrário, produz, quase por toda parte, espigas grandes e ricas de farinha."


3. Ao invés do tanino, o mangue vermelho era usado no Brasil para curtir couros. A cochonilha, hoje universalmente conhecida como uma praga, está associada ao cactus Nopal mexicano e era usada para fazer tintura vermelha! VM&S inclusive especulam sobre a possibilidade de explorar comercialmente a cochonilha em São Paulo.

4. Com meros 30.000 habitantes, VM&S anunciam que "O clima da cidade de São Paulo é um dos mais amenos da terra." 

5. Ouro Preto:

Quase que todas as semanas, ou cada m s do ano, seguem grandes caravanas, carregadas com os produtos da região: algodão, couros, marmelada, queijos, pedras preciosas, barras de ouro, etc., para a capital, e voltam, trazendo sal, vinho, chitas, panos, presuntos, espelhos, artigos de ferro, novos escravos para a exploração das minas de ouro, etc. O comércio com o mais longínquo sertão, que vai até Goiás e Mato Grosso, não tão extenso, de fato, como o de São Paulo e Bahia; entretanto, expande-se até além do Rio São Francisco, quase que por toda a capitania, e abastece-a não só com as mercadorias européias adquiridas no Rio de Janeiro, mas também, com os produtos das imediações,

como, por exemplo, os aqui fabricados: artigos de ferro, chapéus de feltro, louça de barro, queijo, milho, feijão, marmelada, carne de porco e toicinho; este é empregado em vez de manteiga e banha, e constitui grande artigo de comércio da província.

Comments

Popular posts from this blog

Contos: "O engraçado arrependido" de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato conta em "O engraçado arrependido" a história trágica de um homem que não consegue se livrar do papel de palhaço da cidade, papel que interpretou com maestria durante 32 anos na sua cidade interiorana. Pontes é um artista, um gênio da comédia e por motives de espaço coloco aqui só o miolo da introdução em que o narrador descreve o ser humano como “o animal que ri” e descreve a arte do protagonista: "Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, e...

Poema meu: Saudades da Aldeia desde New Haven

Todas as cartas de amor são Ridículas. Álvaro Campos O Tietê é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia, mas o Tietê não é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia porque não corre minha aldeia. Poucos sabem para onde vai e donde vem o ribeirão da minha aldeia, 
 que pertence a menos gente 
 mas nem por isso é mais livre ou menos sujo. O ribeirão da minha aldeia 
 foi sepultado num túmulo de pedra para não ferir os olhos nem molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia, mas, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, 
 a memória é o que há para além do riberão da minha aldeia e é a fortuna daqueles que a sabem encontrar. Não penso em mais nada na miséria desse inverno gelado estou agora de novo em pé sobre o ribeirão da minha aldeia.

Uma gota de fenomenologia

Esse texto é uma homenagem aos milhares de livrinhos fininhos que se propõem a explicar em 50 páginas qualquer coisa, do Marxismo ao machismo e de Bakhtin a Bakunin: Uma gota de fenomenologia Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir essa mesma coisa, mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele p...