Primeiro poema
No sonho ele era um falcão com sangue no bico.
No sonho ele era um falcão.
No sonho ele era uma mulher, nua, indolente depois do gozo, uma centelha de esperma nos lábios vaginais.
No sonho ele era uma mulher.
(Ele podia ao mesmo ser a mulher e ver o fluido viscoso no sonho.)
No sonho ele era um pássaro turquesa feito de pedra sabão por um povo que o cavava da terra e achava que ele era o céu despedaçado de um mundo antigo.
No sonho ele era um pássaro turquesa.
No sonho seus pés doíam, ainda havia muito que caminhar, os lagartos escapulindo na poeira.
No sonho seus pés doíam.
No sonho ele era um velho, sua mulher falecida, que acordava cedo todo dia e fazia o café e cortava pedacinhos de melão para os lagartos e os deixava no chão duro perto do muro do jardim.
No sonho ele era um velho.
As bocas tranquilas dos lagartos que esperavam, eles mesmos da cor da poeira, significava que todas as criaturas da terra eram singulares e solitárias.
No sonho a mulher no elevador tirou seu próprio olho.
Era uma lua no sonho.
No sonho batia-se na porta e era uma tropa de crianças mendigas e ele disse a elas com falsa indignação: “Vocês! Saiam! Hoje não é o dia de vocês. Terça-feira é o seu dia.” E as crianças riam cheias de bom humor.
O dia delas era terça-feira no sonho.
Todas as cartas de amor são Ridículas. Álvaro Campos O Tietê é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia, mas o Tietê não é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia porque não corre minha aldeia. Poucos sabem para onde vai e donde vem o ribeirão da minha aldeia,
que pertence a menos gente
mas nem por isso é mais livre ou menos sujo. O ribeirão da minha aldeia
foi sepultado num túmulo de pedra para não ferir os olhos nem molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia, mas, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
a memória é o que há para além do riberão da minha aldeia e é a fortuna daqueles que a sabem encontrar. Não penso em mais nada na miséria desse inverno gelado estou agora de novo em pé sobre o ribeirão da minha aldeia.
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